Durante uma caminhada na manhã de ontem um amigo de filosofia dizia-me uma frase estafada, “viver é apreciar a vida nos seus belos detalhes”. Quase num nível de devoção próximo das experiências, emoções, estéticas defendidas nos postulados de Clive Bell e Jerrold Levinson. Mas, ter maneira de viver assim, a apreciar, se a vida não passar, de manhã à noite, de um extenso relatório de sobrevivência, contas por pagar, processos por cumprir, burocracias que empatam, torna-se um ininterrupto acto de resiliência, de querer muito manter fértil e são o nosso ‘jardim interior’. Nada, muito menos a vida, tem valor inerente e seria bom que nas escolas e universidades, quando se anda à deriva e o substantivo feminino na linha do horizonte é «precariedade», dissessem isso mesmo: — ‘Apreciem os feitos e os detalhes, sem quaisquer expectativas’. Mas até estes modos de vida podem já não produzir significados nos que os vivem.Soube há cinco meses que o filho de uma amiga, músico e investigador, a viver em Cabo Verde tinha entrado em depressão a meio ano de defender a tese de doutoramento. A minha amiga, também artista e investigadora, bafejada pela fé cristã ao contrário de mim que sou agnóstica, viu o filho envolvido num gravíssimo acidente de viação durante o primeiro surto pandémico, não sobreviveu. Se esta amiga achasse probidade, dignidade, uma qualquer emoção estética, adoração divina, na vida que levava, após a perda do filho não lhe teria posto, também, fim.O psicanalista Christian Dunker, coordenador do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP, onde estuda as formas de sofrimento no neoliberalismo, afirma que o foco em tarefas e resultados tem inibido as perguntas sobre o desejo de cada um e que «as pessoas olham a própria vida como se fosse uma empresa a ser medida pelos resultados». Os resultados ideiais são mais ou menos como a vida ideal, aquela em que nos tornamos os autores, os académicos, os artistas, ideais concebendo para ideal o maior número de coisas bem sucedidas. Ou, simplesmente, ter momentos em que somos felizes na abstração, na experiência de ainda existir…
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