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Fragmentos

 
Amélia Muge com Samora Machel, 1975, Maputo

    

    Amélia Muge (n. 1952) é uma artista polifacetada. Intérprete, compositora, autora-poeta, performer, ilustradora. É também historiadora de formação, e talvez isto explique algumas das suas opções estéticas, como se verá.
Sujeito de um contexto social e de um universo artístico especiais (como o são todos, dirão, e tendemos a concordar) marcados por descontinuidades e cisões com modelos de produção discursiva e de recepção precedentes. A artista imprime, numa primeira fase, uma linguagem nitidamente engajada ideologicamente e, numa fase sucedânea, dinâmicas entre-palavras trazendo para a sua criação símbolos da ancestralidade africana e da Grécia Antiga, aliando diferentes recursos expressivos que concedem à sua criação textual-musical uma duplicidade de sinais e mitologemas suportados por lendas, contos, poemas, narrativas, filosofias, histórias e fábulas. É nos imaginários da obra de uma compositora que vai metamorfoseando o seu repertório musical a seguir à independência do país onde nasceu, Moçambique, que esta investigação se centra. Defendemos que a sua obra musical está marcada pela persistência de uma história da trifurcação onde se encontram a história das ideias, a literatura, e a filosofia. Os textos que escolhe musicar divagam entre realidade e ficção, a realidade ficcionada e a ficção realista. O repertório musicado e discursivo (entrevistas cedidas ao longo do percurso) de Muge é per se uma história onde coexistem a intuição e o autodidactismo da compositora. A sua produção esboça uma metafísica da canção literária de protesto que faz coincidir ideias de autores clássicos e seus contemporâneos, formas textuais sonoras que irrompem a tensão entre forças dionisíacas e apolíneas. Isto é, entre uma força da expansão entusiástica fixada no arroubamento de formas musicais inefáveis e outra onde procura expor uma harmonia de noções para a sua arte que subjazem os seus actos discursivos. Formulações que a artista vai recolhendo de outras alturas e adaptando a si e à sua discografia e que, por isso, lhe conferem um carácter nietzschiano. O seu repertório, quer musicado quer discursivo entre 1975 e o início do novo milénio, inscreve-se no imaginário social e cultural nacional, moçambicano e português, especialmente através da sua força volitiva e intuitiva. A autora acolhe e abandona sucessivamente sinais de outros tempos e lugares. Uma ideia inseparável de uma outra, estóica, e  que Nietzsche também adoptaria e adaptaria a si (desenvolvido no capítulo 1): de eterno retorno na génese do seu projecto de transmutação de todos os valores [Umwerthung aller Werthe] e que surge pela primeira vez nos escritos de 1886, como subtítulo de um dos seus cadernos para uma obra que Nietzsche tem como objectivo escrever e que virá a ter como título A Vontade de Poder [Der Wille zur Macht].
Nietzsche é o filósofo da intuição, não sendo um grande bibliógrafo, nem sequer um profundo conhecedor da história filosófica, cola a si elementos de transitoriedade da cultura moderna por meio da revivificação da tragédia antiga de que a música de Wagner era um exemplo. Algo relativamente comum na elite cultural germânica, segundo o investigador Victor Gonçalves, tradutor do Nascimento da Tragédia (Nietzsche 2024*), a menção à Grécia pré-cristã e à tragédia como revigoradora da cultura e da arte, não sendo por isso ex nihilo o escrito e interesse do filósofo alemão. Esse interesse não se esgotou na contemporaneidade, estando saliente na música popular a partir de uma figura como Amélia Muge (desenvolvido no capítulo 2). Se Nietzsche recria figurações e conceitos a partir de fragmentos da história e da sociedade que possam corresponder às percepções tidas por instinto – de Dionísio ao eterno retorno e à vontade de poder – para as ir eliminando de modo continuado, Amélia Muge é uma artista da intuição e da mescla. Ideias literárias e musicais, tempos e lugares, estão presentes na sua vasta obra fonográfica inscrevendo-a num gesto criativo análogo ao do filósofo-poeta-músico alemão. 
Ao iniciarmos esta dissertação de doutoramento, apercebemo-nos como, provavelmente, novos rumos para uma grande parte da sua obra estarão a ser criados. De facto, diante do objecto em mãos este estudo começou a implicar uma brecha para sondar e descortinar outras possibilidades críticas no campo musical (desenvolvido no capítulo 3). 
O diálogo entre a artista e outros autores revela-nos muito mais do que uma soma de sucedidos relativamente fáceis de cartografar e pesquisar sobre os seus discos; seria uma incúria não retirar da penumbra o indizível e o encontrado na multiplicidade da experiência, a sua mutabilidade e os contingentes da vida artística moderna e pós-moderna. Assim, são repensados não só os textos musicados, editados ou não comercialmente, como os discursos da artista, as mudanças sucessivas de lugar, de condição, de estado da consciência artística ou social.
Entre conjunturas nacionais e internacionais convergentes na sua actuação há uma vertente histórico-filosófica que nos importa realçar e debater
(desenvolvido no capítulo 4).
    Albergamos nesta reflexão crítica uma bibliografia plural de enquadramento teórico na história das ideias e filosofia, mas que passa também pelos estudos de género, a teoria da cultura e da linguagem política e os estudos decoloniais.

palavras-chave: vontade de poder das artistas; utopia; canção literária de protesto; eterno retorno

financiamento FCT PhD [2021-2025] em ambiente não académico

*Edições 70



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