Amélia Muge (n.1952) é uma artista polifacetada. Intérprete, compositora, poeta, ilustradora. É também historiadora de formação, e talvez isso explique algumas das suas opções estéticas, como se verá. Sujeito de um contexto social e de um universo artístico especiais – como o são todos, dirão, e tendemos a concordar – marcados por descontinuidades com modelos de produção musical e de recepção precedentes e continuísmos de índole ideológica e sociocultural. Imprime, numa primeira fase, uma linguagem nitidamente engajada ideologicamente e, numa fase sucedânea, dinâmicas entre palavras. Na sua criação convivem símbolos da ancestralidade africana e da Grécia Antiga – diferentes recursos expressivos que abrangem uma duplicidade de sinais e mitologemas –, suportada por lendas, contos, poemas, narrativas, fábulas. É na edição discográfica de uma compositora que vai metamorfoseando o seu repertório musical a seguir à independência do país onde nasceu, Moçambique, que esta investigação se centra. A sua música é marcada pela persistência de uma história da trifurcação para onde converge a história das ideias, a literatura, e a filosofia. Os textos que musica abrangem realidade ficcionada e ficção realista. São invenções mitológicas, não no sentido em que a artista se envolve, e deixa "intoxicar" pelas épocas em que compõe, mas por que há nelas uma espécie de radiografia dos vários tempos de criação da artista como dos meios que a possibilitam e, por isso, nos fornecem, um diagnóstico. Por outro lado, uma ficção, lembra o ensaísta e crítico James Wood (n.1965), diz a verdade ocultando pormenores íntimos, tapa-os para a verdade conseguir dizer, porque, afinal, toda a artista é uma mentira que diz a verdade.
O repertório que a intérprete escolhe é per se uma micro-história da sua intuição e do seu autodidactismo face às mudanças pessoais que são indissociáveis do contexto histórico. A artista esboça uma metafísica da canção literária onde os mundos de autores clássicos e contemporâneos coincidem; estamos diante formas sonoras e linguísticas que irrompem a tensão entre forças dionisíacas e apolíneas. Isto é, entre uma força entusiástica fixada no arroubamento de formas musicais inefáveis e uma outra, que procura ser definível, em que pretende harmonizar noções, por vezes defender teorias para a música que faz. Tem sobre elas muitas coisas para nos dizer de modo não declarativo. São formulações que vai retirando de geografias e tempos distantes dos presencialmente vividos mas que neles se complementam criando ambientes pluri-sinestésicos de grande nobreza fonética e afectiva que preparam os ouvidos para sonidos fora das convenções histórico-antropologizantes sobre autorias femininas em contexto colonial e pós-colonial. É possível inscrever o seu repertório, quer musicado quer discursivo, entre 1975 e o início do novo milénio, nos quadros culturais moçambicano e português, através da sua força volitiva e intuitiva; mas é também previsível que houvesse momentos em que não quisesse estar presa a nenhuma época; cada tempo não é apenas o tempo de um pentagrama, por muito tocada que seja uma cifra ela é um objecto inacabado, a menos que definhe precocemente ou a matem antes de poder fazer o seu caminho até aos ouvintes.
A compositora acolhe e abandona sucessivamente sinais extemporâneos, retorna às valorações de feminino, masculino, moçambicana e portuguesa, literatura e música popular, alta e baixa cultura, procurando outros desígnios ou subvertendo discretamente os vigentes. Ao sair do concreto para o abstracto, do local para o universal, numa tentativa de superação das limitações das geografia e história locais; recolhendo, misturando, reinterpretando, abandonando directrizes e expectativas das indústrias musicais para si, vai reagir artisticamente e criticamente, em várias fases da sua discografia, às subjectividades das narrativas culturais que dominam a academia e o jornalismo sob uma aura pretensamente crítica, mimetizadora de um registo universitário e onde conflui, por vezes, o registo de crónica de costumes descentrado do objecto e centrado no autor que assina o texto. O movimento da artista está próximo de um outro, estóico, que Friedrich Nietzsche (1844-1900) resgataria e adaptaria a si: de eterno retorno na génese do projecto de transmutação de todos os valores [Umwerthung aller Werthe] e que aparece pela primeira vez nos escritos de 1886 como subtítulo de um dos cadernos para uma obra que Nietzsche tem como objectivo escrever e que viria a ter como título A Vontade de Poder [Der Wille zur Macht]. Nietzsche é o filósofo da intuição, não demonstrando ser um grande bibliógrafo ou um profundo conhecedor da história filosófica, cola a si elementos de transitoriedade da cultura moderna por meio da revivificação da tragédia antiga de que a música de Wagner é um exemplo. Algo relativamente comum na elite cultural germânica a menção à Grécia pré-cristã e à tragédia como reabilitadoras da cultura e da arte, não sendo por isso ex nihilo o interesse do autor. A afeição pelo trágico, o inescapável, o mito como fábula e narrativa ancestral preservada pela tradição, tem um lugar surpreendente na música. Se Nietzsche recria figurações de conceitos a partir de pedaços da história e da sociedade que possam corresponder às suas percepções por instinto – de Dionísio ao eterno retorno e à vontade de poder – para os ir eliminando de modo continuado, Amélia Muge é uma compositora da intuição e da mescla: ideias e lugares presentes no vasto legado fonográfico sugerem um ademane símile ao encontrado em textos do músico, poeta, filólogo-filósofo alemão. Foi Nietzsche quem urdiu a ideia do filósofo como médico da cultura, portanto compomos com a artista uma diagnose de cerca de três décadas de edição literário-musical entre dois momentos da história de Moçambique e Portugal com uma boa parte da sua obra discográfica como pano de fundo.
Ao iniciarmos esta dissertação de doutoramento apercebemo-nos do risco, novos rumos para o seu repertório estão a ser delineados; combinamos elos teóricos ainda não explorados na história da música a partir de uma compositora com uma profícua produção desde os anos sessenta. Devido à nossa longa experiência de abordagem à música feita em Portugal nestes anos, e à trajectória musical de Muge particularmente, sem pausas desde 1975, à paixão por música e ao interesse longínquo por textos inabituais musicados, achámos uma brecha para sondar outras vias críticas do universo composicional e cultural feminino na diáspora. É que o diálogo com compositoras revela-nos muito mais do que uma soma de sucedidos relativamente fáceis de cartografar sobre os discos; seria uma incúria não retirar da penumbra o vislumbrado na multiplicidade de experiências e os contingentes da vida cultural moderna e pós-moderna. Entre conjunturas nacionais e internacionais há uma vertente histórico-filosófica que nos importa realçar e debater. Albergamos nesta reflexão crítica uma bibliografia plural de enquadramento teórico com preeminência da História das Ideias e da Filosofia.
palavras-chave: vontade de poder; utopia feminista; canção literária; eterno retorno, dor, nostalgia, ressentimento
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