Meu discurso é o silêncio, meu canto o grito
"A utopia existe sempre à custa da vida real"
Parece não ser só uma tradução. Tendo como motivação poemas, dramaturgias, entrevistas de Müller, ensaia-se. Tira-se o rastilho tensivo às cordas de uma, de muitas, das guitarras deixada pelo escritor-dramaturgo e
...1, 2, 3... Ou, melhor, eins zwei drei:
Fernando entra com um acorde suspenso, que adiante se transformará em quinta justa e antes do previsto puxa do dó aumentado, temos a tríade montada, dó, mi, sol; malhas entrecruzadas, renovadas sinestesias.
E o que se segue é insinuante, retemperante, e muito sóbrio: o organizador desta edição no encalço de trechos capazes ainda de pegar fogo entre ouvintes, leitores, espectadores.
"[...] a Machstraße/Nem a sua academia das Ciências/Com a queda do despotismo asiático [...]".
Num tal excitamento de frequências a que é impossível ficar indiferente, extravasam-se barreiras datáveis; no sentido de ao apresentar, além da cronologia final, probabilidades, sugestões, sem pretensiosismos nem Sterne jenseits der Zeit, nos reabrir a ruminações atemporais, aliás as estrelas aqui relacionam-se e misturam tempos e cadências, porque o tempo é anterioridade, ancestralidade, posteridade, simultaneidade. Linha do tempo, antes do tempo, contratempo e o que fica doutros tempos.
E, de súbito, reouve-se Müller a responder ao Fernando e este a Müller. Sublinha-se um pedaço do texto e já estão três, numa outra garagem, palco, ou estúdio, a ensaiar história, chumbo, ruína e anastase, árvores que pertencem aos mortos, manhã e noite, falsas consciências e tecnologia, classes e chuveiros preparados para acordar defuntos que tantas vezes nos visitam ainda quentes, mais despertos que certos vivos. Porque os vivos "são apenas uma metade do real".
"[...] O princípio de Auschwitz é o da selecção. Antes de entrar no exército (...) tinha o Crime e Castigo, de Dostoiévski. Há ali um presságio de Auschwitz, em Dostoiévski. (...) Roskolnikov julga pertencer a uma elite, imagina-se superior. Não tem dinheiro mas, como Napoleão, é um génio [...]".
No último capítulo, cujo título saltou para a capa (O Futuro É O Mal), uma conversa que ressoa nascimento-ruína-ressurreição de sociedades coetâneas: de Müller com Frank M. Raddatz para o n°3 da revista Trans-Atlantik.
"[...] FMR — Poderá a «nova ordem mundial» ser entendida como um elemento de emancipação? HM — Apenas pela negativa, porque só podemos emancipar-nos enquanto indivíduos. Um aglomerado de indivíduos não pode emancipar-se. E os grupos também não. Enquanto indivíduos conseguimos ainda ter uma consciência. Cada indivíduo que habita uma construção grupal tem de renunciar a uma parte de si. Tudo o que é válido para duas pessoas está errado. A única coisa certa é o que é verdadeiro para o indivíduo. Isso começa na relação entre um homem e uma mulher. A própria ideia de que poderia existir uma união entre um homem e uma mulher é um erro, porque os pontos de partida são muito diferentes. Só uma falsa consciência pode fazer-nos esquecer essa diferença, e o amor é uma metáfora para a falsa consciência [...] A comunidade é sempre um termo mobilizado para legitimar a invasão do indivíduo. Temos de aprender — e essa é a essência da emancipação — a suportar viver sozinhos [...]"
A ouVer e rever para melhor ler este diálogo que se traduz numa invulgar organização dos sonidos e das ideias nos textos desta referência de um outro teatro alemão, num plano em que, cada vez mais, circulamos por épocas, multiplicamos noções e combinamos alturas. Trabalho de grande temperança.
O Futuro é o Mal de Heiner Müller por Fernando Ramalho numa edição da Língua Morta.
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