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Fragmentos

 O Imenso Comércio do Nada


A europa e seus fantasmas de dominação


Weidendammer Brücke, Berlin-Mitte, 2025




A pior mentira é a mentira da candura, da paz, do bom senso do parlamentar ocidental. Já mentimos tanto, já omitimos tantas coisas, que podemos começar a experimentar a honestidade a ver se ela nos cura. 

É possível que dentro de poucos anos comecemos a renunciar ao pensamento dimanado da paixão e do desejo, da sinceridade connosco, a temer a angústia, a desenvolver cada vez mais conhecimentos que aproximam o mundo idealizado do que cremos ser o real, a moralizar os pederastas silenciosos numa manifestação ao fim-de-semana que silenciosos ficam como resposta ao chinfrim bélico do mundo. Afinal, a nossa principal característica é ter memória curta e aliviar episodicamente a boa consciência burguesa com acções para ficar tudo na mesma, menos a percepção que outros de nós terão.

O drama histórico dos massacres e das limpezas étnicas – Bósnia e Kosovo, Sudão, Ruanda, Congo, Serra Leoa, Palestina, Camboja, Bangladesh, Timor-Leste – accionou o preconceito e o apelo a uma intervenção militar, invocou a falência dos estados, os líderes tão terroristas quão carismáticos, os lugares cheios de bandos que se matam em nome de Deus e de um feudalismo bastardo dominado por administrações territoriais sanguinárias. A guerra pelo reconhecimento dos estados independentes é sempre feita por quem decide qual é a guerra que os povos lesados estão a entabular.

Antes de 1967 os palestinianos precisaram de um estado que os protegesse em Gaza do Egipto e da Jordânia na Cisjordânia; depois de 1967 precisam de um estado que os proteja de Israel. Em 1967 também acontecia outra guerra, não de ocupação, de abertura e expressão pública, quando a imprensa egípcia dava nota nas gordas  de “empurrar os judeus para o mar” como nos falou Michael Walzer num texto traduzido e publicado entre nós no início do novo milénio pela editora Cotovia. É incontestável que é difícil falar de uma ética da guerra perante vários genocídios no mundo. A nossa segunda característica é a impotência, a impotência de que fala Bifo Berardi em Disertate. Berardi parece ter chegado ao fim das hipóstases, das possibilidades no horizonte de que falava em Futurabilidade, traduzido e publicado cá pela VS. Deita a toalha no chão para nos dizer que a esquerda merece ser traída por ter sido uma farsa e em si própria uma traição histórica da vontade de quem nela vota.

Uma certa esquerda como zombie do passado quando a classe operária industrial já quase não existe é gesto pífio. O drama histórico é o da guerrilha, a revolução é digital e tecnológica. O nós converteu-se no eu e as máquinas, no eu com a técnica e a tecnologia; nesta circunstância é-se uma imensa comunidade revoltosa de teclado, as redes vieram substituir as comunidades.

É legítimo os militares e militantes palestinianos criarem o seu próprio estado livre de Israel, da Jordânia, do Egipto.

Cada ano que passa, cada mês, semana, dia faz-se a apologia sistemática da virtude por associação – judeu-sionista, manifestante opositor do governo português a respeito da guerra na faixa de Gaza-antissemita. Saindo do Médio Oriente, também Aimé Césaire, no discurso do colonialismo, sublinhou que o drama histórico de África não tinha sido tanto o seu contacto excessivamente tardio com o resto do mundo, mas a forma como esse contacto foi feito. “Foi no momento em que a Europa caiu nas mãos dos financeiros e dos capitães de indústria mais desprovidos de escrúpulos que [a Europa] se propagou”.



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