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Fragmentos


O imenso comércio do nada XXVI



Talvez nos pareça ainda que uma das mais potentes formas de contracultura a partir dos anos dois mil seja o uso da internet. Sítio de poucas cedências ou barreiras, goza de similitudes com as demandas utópicas e libertárias da geração de sessenta; a mesma aura dos espíritos contestatários e livres de divisões classistas, porém, e mais cedo do que eventualmente previra, como sucedera a outras derivas antes do virtual, também essa ideia foi capturada por uma cultura reformatória e conformista.

O interesse crescente por discos e livros de um período da história ou de outras latitudes geográficas traduzirá certamente o apreço por assuntos como os da coacção da censura e resistência ao salazarismo ou outras ditaduras, as críticas a uma ortodoxia neo-hiper-realista, os imperativos arquivísticos e éticos da literatura e da música proibidas e, de modo um pouco mais subtil, o sujeito poético em comunhão com a mimesis quotidiana, a recriação imaginária a partir da transferência da voz narradora a outros, incluindo os de cenários degradantes.


 No ensaio Prefácio Para os Dias de Hoje o escritor romeno Benjamin Fondane escreve que:


[...] uma filosofia que se propõe abertamente a «transformar o mundo», e não a pensá-lo, está necessariamente forçada a recorrer a «conceitos» inteligíveis e manejáveis (fundados sobre aquilo que os homens têm em comum, sobre aquilo que lhes é idêntico; as relações de produção, por exemplo, mais ainda do que os postulados éticos e o princípio da contradição); está de igual modo necessariamente forçada a rejeitar o singular, o excepcional, o individual, os estados vividos da consciência, na medida em que não são nem um objecto de pensamento claro nem um objecto de interesse social [...]*


Um imperativo ético fundado no princípio da tolerância acredita que pensamentos artísticos mais ousados aceitam a transformação do mundo por via da sua arte mediados por “instituições destinadas a regrar os traços comuns, estatísticos, económicos, já considerados e que suportam a matéria concreta que constitui o seu objecto”?


    Numa das conversas com uma compositora portuguesa-moçambicana cujo repertório tenho estudado, ela lembra que mesmo nascida em Moçambique, tendo vivido trinta e oito anos "primeiro em Lourenço Marques, depois Maputo", ninguém cogitará, nem ela, que é uma herdeira legítima da marrabenta. Esta afirmação é significativa, prepara-nos para um horizonte inelutável; ao longo da vida, qualquer que seja a viagem e a passagem (artística ou com pretensões a sê-lo, "voluntariosa"- impositiva, de entrega e aprendizagem contínua, à procura de melhores condições salariais) por um determinado sítio, até a mais duradoura, pode sugerir e fazer renascer mitos patriarcais, condescendências, e rastros culturais de origem geográfica, familiar, que reforçam as assimetrias de classe, seria preciso deixá-los morrer para que uma nova experiência, uma outra vida, entre o ponto de onde partimos e o outro em que aterramos, surgisse sem que os pontos se anulassem ou sobrepusessem depois de agregados. São muito poucas as autoras que conseguiram romper as expectativas que têm para nós, mas Amélia Muge é, com certeza, uma das primeiras nos anos noventa; a um dado momento terá rompido certos imaginários a que agora voltamos. Não sou daqui, escreve e interpreta, embora, como hoje reconhece, também fosse.





Uma espagiria que marque as pessoas nascidas ou criadas em cruzamentos territoriais, não é interpretável por quem é visitante, residente-flutuante, turista ocasional, não se vê, muitas misturas não ficam à superfície da pele mas podem denotar uma linguagem que nasce do atrito. E as questões surgem: De onde somos? Há um sinal de pertença que é necessário vincar e abraçar? Por quê e para quê? Banalizar estas perguntas pode ter um interesse especial para quem aprecia catalogar certos mundos na torre ebúrnea e lassa dos salões, sintomas, talvez, de pressupostos que aparentam vir da sociologia e da antropologia contemporâneas na boca de comentadores de um irreal social como cantado pelo senhor do Boavista.
Por não possuir uma língua estática, por apenas poder ser apartada do mundo se não houver um ouvido humano que a escute, sendo isso hoje quase impossível, tirando alguns territórios em conflito e sem acesso à internet, só a música está próxima de adormecer os sinais de grandeza algo "des"controlados que demonstram a necessidade que os percepcionemos como alguém que tem uma opinião "diferente" sobre certos itinerários visitados. Mas, quem permanece? Parece buscar aquilo que outrora se vulgarizou chamar raízes. Ou uma ilha com o nome de utopia, como canta Amélia Muge em Archipelagos.
    Qualquer arte musical existe na relação entre sujeitos de outros lugares, tempos, com experiências diversas; só assim falamos de uma rizomatização da escuta, de outra maneira a audição repetida de um trecho, ou a assumpção de uma cultura, seja isso o que for para quem as observa, é aleatória e descomprometida.
Tal como um poliglota que no mesmo espaço fonológico de um sistema linguístico com vários níveis de execução e escuta tem sobre o meio onde convive um efeito preciso, resultado da aprendizagem de mais do que uma língua, alheio ao provocado se começar a juntar as várias aprendidas, também uma intérprete de um mundo no qual tem poucas afinidades se diferencia no que consegue criar a partir da mixagem das suas experiências culturais; no entanto é na correlação de línguas e escutas que novos símbolos, novos ideários de abertura a outras interpretações, podem, ou não, acontecer. No segundo dos casos, quando a envolvência não chega a dar sinal de si, raramente acontece algo que já não tenhamos escutado a um ponto da mnemónica que o enunciado antes de ser emitido já dança na nossa cabeça.
Só práticas artísticas que não entraram nos circuitos de mediação exteriores aos autores são capazes de se opor ao universo que as tenta capturar e sintetizar para consumo quase-intelectual. Só essas práticas nos preparam, tantas vezes involuntariamente, para uma releitura da história do ocidente afastada das viagens e das "travessias pessoais" das quais desenterramos alguns dos puritanismos menos bem cavados.

Se estivermos a falar de lugares simbólicos para as ideias políticas; sítios que se postulam, produzem, e recebem extemporaneamente, por via de relatos e imagens datadas, antes remetidos para a teologia e a filosofia analógicas, algumas compositoras que viveram esses locais podem até redescobrir hoje nas suas criações elementos catárticos que levam a descodificar a fraude daqueles e daquelas que se acham acima da crítica ao patriarcado, ao machismo, ao classismo e ao racismo. Mas, é também possível que não vejamos nada do que seria expectável. E, assim, a justificação e a análise exageradas (o mais comum em alguns autores que colhem frutos de militâncias que não tiveram quando outros já cá não estão para se poderem defender e apontar sobre reis nus) pode apenas resultar da insuficiência dos seus textos. Não chegaram a nós do modo que desejaram. Porque o que conta num processo como o da era digital não é o texto nem a música, mas quem os medeia e as suas expectativas pessoais, as que tem para o mundo que lhe permite dar um sentido um pouco mais impressivo à sua existência.
    A grande vantagem de começarmos uma discussão sobre artes com uma leitura histórica, é poder reconhecer que a história feita pelo ocidente se presta a ser discutida em termos de interpretação e autocrítica. Três das principais farpas ao jovem século XXI são idênticas ao anterior: o deslize das figuras de autoridade, o rompimento com a tradição, e o conceito de liberdade permanecer arraigado num sistema religioso, embora, para esta última interpretação, como mencionara Hannah Arendt, não baste demonstrar que há uma compatibilidade entre liberdade e “o nosso sistema religioso”, é fundamental provar que um sistema baseado na liberdade é religioso. A esta observação acrescentarei a de uma compreensão política que a nascer de uma arte, continuará a ser filha da intuição e da vivência. E a morrer por elas ou a falta delas.

Numa era de dissolução dos padrões de legitimação das artes, conservadora de paradigmas morais, procura-se intuitivamente, e talvez tardiamente, a emancipação do local e da origem pela vontade de cada pessoa, sabendo que ao lado cavalgam umas quantas ideias cristalizadas dos nossos lugares e dos lugares dos outros. Há, com certeza, neste processo laços contraditórios, engajados e niilistas, atados e desatados da superfície aos fundamentos da criação ensaística; laços do nosso pequeno mundo no mundo. As coisas que se passaram numa geografia distante detêm uma ambiguidade: tudo pode ser visto em ligação como separado; isto é particularmente caricato se estivermos a olhar para alturas em que não havia internet nem um escrutínio em cima dos acontecimentos como há agora ou de locais onde as condições de existência não são as que temos.

    No célebre ensaio Ponte e Porta [Brücke und Tür] do filósofo e sociólogo alemão Georg Simmel, a dado momento a ponte dá forma a um valor estético casando o que está separado na realidade, e cumpre finalidades práticas, com o que se torna visível. Num sentido simbólico menos atilado vemos os objectos proibidos numa impiedosa separação do local, em que nenhuma face material pode partilhar o seu espaço com a outra face material por não existir uma unidade real de diversidade nele. Sob este prisma, a existência parece divorciada do estar em ligação; auto excluindo-se foge à aposição, à contiguidade, às fissuras e sombras dos momentos em que transita. Só aos humanos é dada a faculdade de ligar e desligar o interruptor que o junta ao universo cultural ou à geografia, e de maneira idiossincrática em que uma é sempre o pré-requisito da outra. Da mesma maneira que só quem é sujeito, não quem se afirma sujeito mas a quem a sociedade não destitui agência, pode pensar como quer construir a sua casa, erguer um muro em frente a ela, passar uma ponte, fechar uma porta. Ao poder ser aberta a qualquer altura, a porta de um compartimento articula uma ligação entre o espaço do nosso corpo, da nossa reflexão, e o que está fora. O acto de a fechar dá-nos a sensação de estar mais fechada a uma reacção externa, algo inoportuno fora da nossa divisão, do que à mera parede que a suporta. Simmel fala-nos de um pedaço do espaço ora ligado [abrir a porta] ora trancado [fechar a porta] ao resto do mundo a partir das continuidade e infinitude. Apesar de as metáforas das redes, pontes, muros, portas e janelas que se abrem, estendem e fecham, gozarem de um vasto naipe representacional em inúmeros textos ao longo da história, merece destaque este olhar de Simmel por procurar resumir uma ideia basilar e simples: no silêncio, ao fechar ao que não interessa, a porta também fala. Quando, numa altura de alargamento dos hábitos culturais, as pontes parecem abrir-se, como com a chegada da internet, é a pessoa formalmente em liberdade que estabelece para si uma limitação de forma a poder apagar esse limite e pondo-se fora dele. A significação ponte-porta simulará, nesta perspectiva, lugares da existência física ou metafísica. Trata-se, portanto, de uma metáfora lucipotente. Até para quem, como eu, tem procurado limitar o uso excessivo delas. A porta que se abre deixando entrar a luz e iluminando um eixo fronteiriço onde a criatura que se sente subjugada realmente está ou poderá estar, se assim o desejar, nos instantes da história.

    Na amplitude do reportariado de hoje sobre práticas artísticas em contextos de guerra parece existir um denominador de procura pela tradução dual do elemento trágico nas sociedades contemporâneas, do declínio das sociabilidades pós-modernas e das brechas utopistas de troca e diáspora com restolhos de sequências quase-fílmicas. Semelhante aos quadros relatados por colonos durante a Guerra Colonial, que mobilizou mais população activa que a guerra do Vietname. Nessa altura, as missivas não tinham "likes comprados" e o "marketing agressivo" não era "global". Já a guerra é prevalecente, se tivermos em conta a torrente de estudos e livros dados à estampa na última década em torno da obliteração de registos passados, ou as recolhas de memórias com combatentes e desertores; nas propostas de reparação em museus e instituições privadas e estatais; no alastrar daquilo que poderíamos cunhar como uma “consciência cívica do passado histórico” a manifestações artísticas: a música, a literatura, o teatro, a dança, o audiovisual. Reparem como é usado o adjectivo cívica quando poderia usar o adjectivo activista, apesar de ambos salientarem a não neutralidade dos actos dos sujeitos só o segundo é assim amplamente percepcionado.
A revolta pelos sentidos que a arte traz e determina, quando ainda não foi domesticada, é a de um tumulto popular feito pelo amor à dignidade humana, à terra, ou, como nos explica o psiquiatra e filósofo martinico-argelino Frantz Fanon, onde possa caber todo o passado do mundo que precisamos retomar para sobressair a dignidade do espírito.

Ao rasgar com a individualidade pelo sublime, isto é, com o desconhecido, com aquilo que amedronta [dionisíaco] através das formas racionalizáveis [apolíneas], harmónicas, da cultura popular tradicional fundida em elementos eruditos que bebe influências da música e do cinema franceses engajados do pós-guerra e alia memórias de norte a sul do país e de África, parece que se operou uma transformação de fundo na escrita para variadas, como complementares, artes performativas. Hoje, nos dias cinzentos da memória, o mais comum é não sairmos dos álbuns pessoais de voluntários e queques em transição, não se sabe bem é de onde saem e para onde querem ir. Há sempre uma premissa que avisa que há que os ajudar ou varrer da nossa passagem autóctones como se os forasteiros fossem eles e elas, os outros e as outras, selvagens que ainda não aprenderam as boas práticas do pensamento crítico, e não todos nós desde a chegada da internet.




*Benjamin Fondane 2024. A Segunda-Feira Existencial e O Domingo da História; trad. Diogo Paiva. VS. Editor.

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