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Fragmentos

     







O criador de estrelas religa-nos à cosmologia, ao porvir. Entre pessoas e estrelas, a cegueira e a lucidez num sonho prenhe de irregularidades, medos, bifurcações. Um voo veloz que nos edifica, destrói e reconstrói, nos leva a «flutuar» com o mensageiro «no fundo de um poço estagnado» onde as luzes nos vigiam antes de as procurarmos e podem assumir figurações de pedras preciosas; não obstante nos perseguirem, afugentarem e iluminarem nos intervalos da existência-persistência das memórias. A dada altura do chão e das tonalidades, nenhuma delas, provindas das estrelas, nos afectam; e, por isso, o mensageiro prossegue o voo, com as dúvidas, o desejo de reencontrar a comunidade que se esvai e recombina entre-os-tempos em ritmos diferentes, como numa cifra. Um pequeno grande intervalo musical, que separa duas notas essenciais, nós e as estrelas, para conseguir produzir uma relação entre elas. Movimento corajoso, receituário de um mundo inextinguível: um universo oposto às assumpções, aos juízos mentais sumários, aos pré juízos que nos continuam a cercar, aos prejuízos que retornaram dos anos trinta, ou, talvez, sempre tenham existido senão desde a criação da Terra pelo menos do continente europeu como o conhecemos.
Quando o incómodo social se dissipava e «a ânsia pela terra destruía o propósito», Stapledon era um entre os «Emissário [s] da humanidade junto das estrelas». Também ele viu com cheiro e som, viu vultos, viu-nos pó, matéria orgânica e inorgânica, material e imaterial, viu discrepâncias, sobreviventes e viventes, ora iluminados ora nas trevas. Ouviu a premonição e cheirou a quimera nesta viagem que supera a «pesquisa astronómica e metafísica» do viajante na escuridão. Com o tradutor Hugo Maia, aprendi que Soraia (nome árabe) é uma plêiade de estrelas (estrela da manhã); curioso paradoxo, quando da casa-não-casa desta homónima as asas bateram muitas vezes entre tempos e durante a noite. Somos, ou não, todos e todas contraditórios? Oscilamos ou não de Malesuada fames a redenção?
Leitura para quem estimar tanto como deste lado dos interstícios, as descidas ao social, de sentir os perigos da terra tanto quanto das subidas de modo a olhar por cima, sobrevoar, planar o eixo, abrandando para melhor ver os terráqueos. Para quem gostar de se deslocar, e ainda não perdeu a vontade de sonhar.
Dancemos no mundo, cantou-nos o Sérgio Godinho.
Edição da VS, texto traduzido por Carina Correia.




"[...] Os aracnóides, destinados à vida activa em terra firme, não podiam esperar uma grande melhoria na massa e na complexidade do cérebro; mas os ictióides, que já eram grandes e eram sustentados pela água, não estavam sujeitos a esta limitação [...]

O sexo, por exemplo, deixou-nos perplexos. Todas as nuvens eram bissexuais, divididas em unidades machos e fêmeas, indiferentes umas às outras, mas muito sensíveis à presença de outras nuvens-pássaros [...]"







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