O Imenso Comércio do Nada XX
É preciso esquecer para que tudo volte como novo
Há momentos em que apetece deitar fora todos os fonogramas recentes com extensas durações de notas musicais para fazer o que uma só faria, ou, meramente, não deixar vir, eliminar antes que se entranhem, como apaguei há duas décadas o açúcar branco e a carne.
Por vezes parecem tentativas preocupadas apenas em manter os becos sem saída de outros, uma obstinação do tradicionalismo; uma tradição que se gozou de vanguardismo foi por não ter pretensões e não almejar ser canonizada. Uma tradição cuja face mais visível até podemos transferir para o presente sem nenhuma demanda extraordinária estilando-a por aí e cantando ao céu, ao sol, à chuva, ‘aqui estou eu fora do resto’. Camaradas, não estamos fora do resto se tudo hoje forem restos de restos de outros momentos e de outros gestos.
Quem passou por um conservatório fora da capital, nos anos oitenta e noventa do século passado, viu-o suspenso no tempo anterior, sabe como o ideário abrileiro não chegou a todos os sítios à mesma hora, no mesmo dia, ou numa feição igualitária, e em alguns lugares demorou muitas tentativas-erro até dizermos 'chegou', quando dissemos, e outras tantas a se instalar com pompa, não vestindo sempre as faculdades humanas ou bondades perenais com que nos convencemos pelas belas imagens de resistência e fulgor dos manuais historiográficos.
As pessoas que ousaram demarcar-se, retirar-se, fugir, desse ensino qualificado de 'clássico', viram como foi nefário ao longo de gerações o que nos foi prescrito ali, a obedecer, não questionar, a achar que a música era apenas o que ali estava escrito, aquilo que no início a musicologia histórica dizia da música, a desumanização da arte dos sons. E como nos aborreceram ao longo de um ano com o solfejar proibindo-nos de tocar em qualquer tecla do piano, quando o que uma criança mais precisava era de experimentar, bater nas teclas, experimentar, viver aquela arte paralelamente ao crescimento das hormonas, experimentar, experimentar, experimentar. Uma arte que era assassinada assim e nos secava e amedrontava, uma arte que se via tomada e comandada por polícias cujo único talento era mandar fincando no chão comum gradeamentos patológicos como o de estarmos proibidas de cotejar aqueles manuais mais ou menos pornográficos de Eurico Cebolo.
Mas, este exemplo vem a que propósito?
Na mira de muitos em vida não se terem conseguido libertar do lugar austero, rebobinando ad nauseam a fita-cassete que já escutámos e danificámos, repetindo formalismo, formalismo, formalismo, quando nem formalismo era, mas uma aberração, um moralismo que não deu conta de si até hoje, um sinal de distintivo de classe que anulou a criatividade e a vontade de meter os pés naquela catequese sónica. E vejo nisto a mesma impavidez de muitos que cresceram sob o artifício de regimes obsoletos de ensino; entre pessoas da minha idade, tenham ou não passado pelo ensino artístico, a geração chamada rasca que hoje anda à rasca, e morrerá enrascando os que hoje lutam pelo ambiente, pela paridade, contra o capitalismo. Preferi a dado momento exercitar o iminente com os meus irmãos mais novos e sobrinhos, a seguir juntando-me a esses jovens críticos sonantes sempre que pude nas ruas.
A ligação à superfície do caule de videiras adormecidas em casas a imitar a ruralidade do antigamente onde fomos profundamente infelizes, mas agora exibem a sua felicidade temporária depois de tomadas por urbanos, ricos, tecnocratas, não apagam que em cada rosto há ainda uma desigualdade notória, em cada esquina se fareja e, de seguida, tapa-se o nariz, e volta-se ao sofá, para quem o tem, afinal está-se sempre melhor dentro de casa que na rua.
É um essencialismo não essencial, um fosso entre a abundância do urbano no campo e do rural que dali saiu para viver na cidade, oh graças ao diabo, a separar-nos. Vivemos realidades paradoxais, violências maternais físicas e psicológicas, nós, as que tiveram pais mais mães que as mães, e ainda nos obrigam, quarenta e oito anos depois, a olhar para os mesmos festins de liberdade desencontrados do realismo capitalista, a olhar com um certo desdém à falta de melhor visão.
Um circo ambulante e subsidiário incapaz, ou capacitado para não querer saber, que sob os princípios das novas valorações e distribuições das castas se continuaram a firmar velhos valores como se fossem novos, valores com milhares de anos e já criticados há milhares de anos, agora trazidos no saco das violas desencordoadas que desafinam por todo o lado, sem que ninguém com melhor ouvido lhes diga, calem-se, são vocês que não nos tocam. Sê tu, não um outro. Antes um desafinado atento que um afinado inchado pelo leve e inflamável símbolo He.
Em mil novecentos e noventa e dois, ou três, mil e sessenta e sete ia mais longe que as manifestações em que acabámos com um cu despido a um metro de nós, o cu era de um colega para a Manuela Ferreira Leite contra a Prova Geral de Acesso; os textos de Nietzsche, entre aforismos, anotações, fragmentos literários, foram a minha música quando com ela me zanguei. A isso devo uma mesada natalícia de um avô, Joaquim Carvalho – dizia-me que ‘as pessoas que nunca puderam ir à escola são as que mais sentem vontade de a frequentar’, ele não tinha podido ir –, quando eles passaram a estar coligidos em vários livros pela livraria da área; ao Der Wille zur Macht, em português A Vontade de Poder, fiquei agarrada, era o meu cavalo. A crítica ao niilismo europeu parecia vir de um lugar de revolta dele. Relendo-o no último ano, espanquei várias crises doutras alturas, especialmente por me ter deixado cativar cegamente ao som despudorado da sua prosa, bati fundo num internamento longo. Não foi em vão. Ando novamente com ele debaixo de olho a tentar vê-lo com os olhos mais cansados e noutro corpo.
As pessoas que comigo cresciam beatificam agora Foucault, esquecendo que a filosofia de Foucault é ora um decalque ora uma derivação reactualizada de Nietzsche, deve-lhe muito, emerge entre nós suportado pelas proféticas coordenadas de Nietzsche traduzindo-as à luz da sua altura, a altura que para quem não tenha lido Nietzsche retumbará a novidade e não a reformulação.
‘Não existe nem espírito, nem razão, nem pensamento, nem consciência, nem alma, nem vontade, nem verdade, são tudo ficções desprovidas de uso’, escreveu Nietzsche. Se houve autor que desenvolveu uma crítica artística aprofundada ao pensamento europeu mais anémico, sem outro rumo que não o do eterno retorno, foi ele.
No livro Origem, ou nascimento, conforme as traduções, da Tragédia no Espírito da Música (Die Geburt der Tragödie aus dem Geiste der Musik) a civilização clássica grega goza de uma aura de animismo e vitalidade corpórea à vez, a tragédia é uma composição musical algo luminosa, uma peça com repetidas execuções, conservada na nossa memória como sistema de notação de uma civilização que acabará por sofrer uns golpes baixos exposta ao torpe socrático dialéctico.
Sócrates, obcecado pela análise exterior, via nos esgares mais instintivos dos do seu tempo erros crassos, já Nietzsche não estava muito interessado com os muros e as nuvens, nem quaisquer entraves ao aprofundamento humano e artístico, ao livre improviso, nem usou cadeados que o pudessem impedir de descer ao subterrâneo e regressar de um fundo antes de nos apontar qualquer percurso ou fundamento, queria voltar não entre movimentos humanos desviantes mas com eles, com o que ali encontrara e vivera por sofrer, não com os dos que se achavam proprietários do maior número das linhas de sentido, sobrecarregado pelos mitos e as mitologias mais evidentes.
A vida vivia-se, a vida vive-se. Quando espionada torna-se paupérrima, abafa todas as nossas ilusões feéricas. Ele mostrou-nos como corríamos riscos se enchêssemos o nosso corpo de calorias vazias, o perigo de matar toda a possibilidade de reunião dos pedaços mais incisivos nas nossas realidades. Se só serviam, se só servem, para mostrar, têm-se, tão-só. Não são, não se é, não se vive.
O socratismo mostrava-se bem. Muito bem. Redundante. Encaminharam-se os séquitos de fiéis num rodar-rodando pelo centro dos umbigos dilatados, os que ainda se viam de cima, os outros, tal o sobrepeso da inércia causada pela ingestão de estímulos minúsculos de absorção imediata, retardavam a consciência. Hoje será fast-food, o juízo imediato, o pensamento pronto-a-servir-despir-comer mal digerido.
Ali esteve e continua a estar Nietzsche, numa ousadia inimitável, em freestyle, um punk antes do punk como mercadoria paliativa — sacrilégio este anacronismo, este desajuste —, a mostrar como a liberdade de ser é aquilo que se rebela contra a padronização e a normalidade, estava e continua a estar dizendo que corrigir características do humano por nada lutar, esperar a sua sentença de morte, vê-lo definhar diante da vida, até pode ser um ideal, mas se a procura de uma verdade é superior à vida; ele, que sempre rejeitou ideias absolutas de verdade e a moral, permanecia, mesmo que poucos já o ouvissem e mal, a gritar, como é apanágio dos entes inconformados onde não é o tom gritante mas o pensamento e o corpo parado no meio da estrada que gritam até ao limite, que um suposto bem era possível pela nossa afirmação em gestos estéticos, só isso elevaria o humano. Quaisquer uns. A indagação nietzschiana às tradições remanescentes da estirpe socrática era crua, simples e não simplista, se a reflexão que dali decorria se baseava em verdades paulatinamente aprendidas sendo, de igual maneira, hostil à nossa eflorescência humana, era decisivo desprezar esse raciocínio.
Se Wagner sintetizava o espírito da tragédia grega como algo divino, o mal para Sócrates expressava-se na inconsistência do raciocínio e a ortodoxia cristã no pecado. Para Nietzsche essa vontade de redenção soava harmónica apenas neste ponto ‘deseja um eu e tornar-te-ás um eu’. O avesso da moral e ainda mais do ser niilista, apesar de o ter estudado, pelos efeitos prejudiciais que dele observava.
Morre Deus morre o passado, os portões trancados abrem-se, os sinos despóticos quebram-se, o futuro é incerto e ilimitado ou, ‘é preciso esquecer para que tudo volte como novo’, enfatizou.
E é aqui que páro nesta viagem ao passado rápida e desordenada. A nossa vida, a nossa natureza, é solitária, mesmo quando nos mostramos e interagimos é um pequeno desvio numa longa auto-estrada onde passamos a vida por vontade e contra a vontade perdendo gente, afinidades, amigos, familiares, matando leituras, ressuscitando outras, entendendo-nos entre páginas com vozes cristalinas e guturais sublinhadas outrora; é a viragem de uma existência a sós, auto-reflectida, para uma socializável, corrompida, viciada.
A decadência humana é também o desgaste das amizades, não das amizades fogosas on-line e off-line, antes das que crescem e das que decrescem. As que decrescem, no entanto, crescem pela ausência de laços que nos prendam e pela recuperação de mitos com que nos vamos compensando sem nunca atingir o nosso fundo, nem um fundo comum.
O modo como a própria doença mental mais severa é tratada entre os nossos, com nostalgia e remorso, é geradora de um efeito da corrupção que releva as nossas paratimias suicidas e nos corrói acidificando o sangue.
Parecemos manequins agarradas ao prego velho suportado pela velha Singer com pedal e roda numa casa pobre, em que as modelagens eram costuradas para as vidas preparadas, em linhas bem vincadas dos princípios éticos da moral cristã. Esses aos quais Nietzsche se opôs, pois entendeu-nos tentando entender-se, como seres maleáveis. Seres movidos por uma vontade de afirmação e não por nenhum ente divino ou inalcançável. Rejeitava tanto o racionalismo socrático como a moral cristã que invadiu hoje o mundo das artes. E a nossa vida social, a expectativa que outros têm sobre nós mesmo sabendo que todas nós estamos subordinadas ao esquecimento é, assim, ridícula.
‘Não existem leis da natureza, mas necessidades’, disse o autor.
Se há uma genealogia da moral edificada a partir da moral que parte de uma ideia de tempo, do experimentar esse tempo mais sofrido de vida, há igualmente o da revolta contra o tempo, o estímulo de vingança é uma condição temporal da nossa existência, na nossa forma de agir acolhemos o pathos da revolta contra a vida.
Sete de Dezembro de 1999, estava a um ano de ser internada, jejuns frequentes para atingir um pensamento ‘limpo’. Em Camden Town um grupo de actrizes e activistas feministas, de quem ainda hoje sou amiga, tirando duas que a vida ceifou cedo, afirmei que nunca senti o tiquetaque do relógio biológico, não conseguia ser complacente com nenhuma clique com tiques autoritários, mesmo se esta militasse à esquerda, porque isso me trouxe sempre para o fundo do poço, nenhuma, portanto, que pusesse uma moral ou uma natureza turva acima de uma cultura experienciada e de um eu, de vários eus, com um olhar superior sobre a vida me interessaria, não ocuparia um cargo numa instituição cujos pressupostos não corroborasse, apesar de quando era menos faladora me terem feito poucos convites, sempre tive dificuldade em sintonizar o meu tempo no compasso firme e estéril de que o feminismo existe como tronco maciço e a sororidade era uma inevitabilidade fossem quais fossem as circunstâncias e as acções. Apenas por um motivo. Uma mulher que não meta a cabeça no cepo por uma vida sofrida, se daí não retirar recompensas sociais ou mediáticas, está longe do meu ideal feminista. O sofrimento não se pode instrumentalizar, era a minha convicção. Ainda hoje é. Ouve-se e toma-se parte, cria-se comunidade, rede de apoio onde não abunda. E se houver um feminismo que não tenha sido construído sofridamente, na ausência, é difícil que nele acredite, não por uma maldade ou uma bondade humanas, mas por o humano ser maleável ao capital.
Serão hoje as mulheres menos agredidas publicamente que falam criando eco além da sua bolha em nome de correntes e vagas distantes umas das outras, quer na sua ideologia quer nas teses defendidas, possivelmente por desconhecimento, mas o feminismo de Beauvoir não é o feminismo de Despentes, nem Duras foi Yourcenar, nem Butler tem a mesma relevância para algumas mulheres que bell hooks, Angela Davis, ou Nancy Guevara, e se isso assim é, além do género, da classe, da raça, é, sobretudo, por sabermos que todas as mulheres de homens beneficiários dos mesmos mitos da moral cristã, de um poder simbólico decadente, da esquerda à direita, são as ainda hoje escutadas, por também elas se tornarem célebres nuvens cinzentas ao servirem para ilustrar os mitos e os símbolos, que, correndo o risco de acabar a falar por uma revolta da individuação, terminam reduzidas em enfeites destiladores de algo mais duro, e, tantas vezes, defensor dos agressores, de quaisquer acusações que em cima lhes caiam.
Uma queda do pensamento socrático e da moral cristã não significa que estes não permaneçam entre nós. Podem-se pôr pins nas camisolas, fazer longas publicações nas redes sociais, festejar o oito de Março, o 25 de Abril, o fim dos impérios coloniais, no meio da nova escravatura não quer dizer que tenham sumido por andarmos ornadas com os mitos e os símbolos.
Tudo será circo enquanto não se enfrentar que ‘ninguém dá ordens, ninguém obedece, e ninguém transgride’ como Nietzsche escreveu no Die frohliche Wissenschaft (em português a Gaia Ciência) quanto à habilidade formal e ao espírito livre para a escrita da poesia na Provença, por que num espaço de falso conflito, isento de controvérsia, tais ideias de limpo, intocável, são a antítese da fluidez, se pensarmos que pureza e sujidade são algo estanque, não permitem um movimento real mas as máscaras urbanas em movimento, adornos medonhos sem fluxo de uma ideia própria, corajosa, ou honesta.
A suspensão do tempo histórico trazida por Furio Jesi em Spartakus Simbologia da Revolta editado em Portugal este ano pela VS. Editor está próxima da mesma ideia do eterno retorno nietzschiano. Toda a gente que é antes de ter, toda a pessoa que age sem sequer pensar no que ganha com, todo o revoltoso que se apresenta com o seu eu, é colaborador numa revolta e compromete ‘a sua individualidade numa acção cujas consequências lhe são desconhecidas’. Como nos diz Jesi, uma minoria poderá ter já em mente a concatenação, as suas causas e os seus efeitos, mas no momento da revolta todos os símbolos da ideologia que foram um motor da estratégia só serão interiorizados e amplamente entendidos pelos combatentes, a que prefiro chamar, viventes que sobrevivem.
É preciso olvidar para que a revolta se mantenha e uma nova vontade de poder surja. Quais serão os meios se o importante for criar e manter relações artificiais?
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