O Imenso Comércio do Nada XXI
Interessa mais mostrar ao que se vem que zombar ministrando quem já lá estava
Vivemos numa altura de rebaixamento de todo o gestuário possuído de frenesim filantropo. Não muito distante de outras fases convulsivas da história; possivelmente muitas pessoas gostam de acreditar que estão a viver o seu próprio poema épico. Vejamos, estão na sua senzala imaginária erguida no interior de baldios ou assumidamente na casa-grande (não é aqui que está o demi-monde? Será o pàrvenú?) suprimem à história o que ela é: realidade, conquista, guerra, conflito, limpam do logradouro duas sublimações espetadas à entrada, Cuidado com a Cadela! e o fraseado do historiador britânico Eric Hobsbawn, qualquer coisa como: ‘o historiador é aquele que relembra à sociedade aquilo que ela procura esquecer’.
Em alturas de insurgência artística, por exemplo, os incendiários parecem estar todos na casa-grande, varre-se dos pinhais a memória e começam a assenhorar-se do terreno alheio.
Importa ressalvar que a assumpção da história enquanto disciplina de fronteira, aberta ao diálogo e às contaminações, é muito anterior, mas irei pousá-la, até para um melhor enquadramento desta breve proposta de leitura, nos inícios e meados do século vinte.
O historiador modernista Lucien Febvre (1878-1956) e o historiador medievalista Marc Bloch (1886-1944), à época da Universidade de Estrasburgo, fundadores da Annales. Histoire, Sciences sociales, revista publicada um ano e três meses antes da Grande Depressão de 1929, e precursores da posteriormente denominada Escola de Annales, embora, como nos diz a historiadora Olga Magalhães, ‘de uma forma genérica os próprios recusem o estatuto de escola, argumentando com a diversidade de temáticas e estilos’, defendem a interdiscursividade da história circunscrevendo, no meu entender, esse diálogo a uma história das mentalidades; uma história escrita a partir de uma síntese mais ou menos epigramática de padrões históricos identificados a partir da história social, económica e cultural, que recorre a gráficos, relatórios de medicina, dados familiares, ou mesmo psicanalíticos. É indiscutível que as afirmativas de ambos acerca da teoria historiográfica gozam, nesse quadro, de ampla aceitação entre intelectuais de todo o mundo, especialmente por romperem com o estudo da história precedente baseado nos grandes eventos por via da crítica das fontes, e por integrarem a antropologia, a sociologia, a linguística, a estatística, a economia, em detrimento da vulgarmente denominada ‘história factual [ou] história dos eventos’.
É um passo de gigante dado pelos seus fundadores. Passando a valorizar as mentalidades, o quotidiano, a arte, a psicologia social, declaram como imprescindíveis podem estes ser para a apreensão das mudanças experienciadas. Não obstante o arrebatamento dessa passada, é a seguir à segunda guerra mundial – não tanto pelo viés das ‘mentalidades’ ou dos ‘costumes’, que desacredito por reconhecer nessas premissas modelos de indução à estagnação das vivências distintas de uma comunidade –, já com Fernand Braudel (1902-1985), que a noção de diálogo e intersecção colhe maior atenção e proximidade com a altura em que tento posicionar-me criticamente.
Não deixando de reconhecer os seus antecessores, Braudel, que acabará a dirigir a revista em 1956 a seguir à morte de Febvre, concede o epígono histórico ao modus operandi característico das humanidades: as relações próprias de troca, alteridade, poder, num espaço intelectual onde coabitam [tradução livre minha] ‘o desejo de se afirmar contra os outros, encontrado na origem de novas curiosidades’, em que ‘cada uma plagia o que acontece com os seus vizinhos acreditando que eles estão hospedados nas suas casas’. Uma perspectiva que amplifica e instiga o feixe de significações nos escritos deixados por Marc Bloch [de novo, tradução livre] ao questionar se ‘Deveria o historiador de uma época em que reina a máquina ignorar como as máquinas são constituídas e como foram modificadas?’ ou, Braudel outra vez, como a história se dedica a ‘captar tanto os factos de repetição como os singulares, tanto as realidades conscientes como inconscientes. A partir de então, o historiador quis ser – e fez-se – economista [filósofo, acrescento], sociólogo e linguista. Estes novos vínculos de espírito foram simultaneamente vínculos de amizade e de coração’.
O gesto braudeliano tem, entre outros, como fito libertar a revista do peso excessivo da história económica abrindo-a a outras disciplinas. Com isso em mente, expande a tiragem e o volume de edições e renova o ímpeto do periódico, em simultâneo introduz uma nova faculdade de ideação do tempo histórico, tornando-se referencial para mais do que uma geração de historiadores. Maulin, por exemplo, destaca como ao mudar a concepção de temporalidade, a história altera igualmente o seu objecto.
Talvez o facto de ter iniciado o percurso investigativo em África e morado uma década na Argélia, confira ao bagageiro (Braudel) uma condução diferenciadora. Quando integra o grupo de intelectuais franceses já traz consigo a experiência das realidades teóricas-empíricas comummente afastadas da cosmovisão histórica eurocêntrica e de uma temporalidade estanque. Indo mais longe [só um pouco, por ora] neste raciocínio, basta perambular pela sua biografia para ver como presencia todas as tensões antes da segunda guerra mundial, é encarcerado por vários anos, e, estando privado de aceder a qualquer livro ou documento, escreve a sua dissertação tendo apenas como recurso-referências memórias, as suas experiências pessoais em colectivo. São elas o único suporte da sua escrita ao longo de um ano; de uma extensa obra depois publicada em três volumes e que permanece viva entre nós, muito em especial pelas transformações incisivas, contrárias aos métodos historiográficos tradicionais, que introduz. É, aliás, Braudel quem afirma que ‘sem o seu cativeiro teria seguramente escrito outro livro’.
As ideias de ‘longa duração’ e pluri temporalidade histórica apresentadas por Braudel num dos seus textos, entram ardilosamente no ofício historiográfico e em contraposição ao argumentário de leitura da história como sendo um parente pobre, de grande utilidade a outras áreas do conhecimento, sejam a filosofia ou a linguística, reduzindo-a a mera colectora de factos ou cartilha do jornalismo, visão que uma história das ideias só pode contestar salientando a desonestidade intelectual, desleixo, ou ignorância, expostos exemplarmente nestes preconceitos.
Não é só do ofício da história das ideias o sublinhado; no fim do século anterior o sociólogo britânico Anthony Giddens reanima-o a respeito do que entende como ‘modernidade tardia’ [e não pós-modernidade]: ‘A história não deve ser equiparada a “historicidade” dado que esta última está distintivamente ligada às instituições da modernidade’. Voltando a Braudel, a história está encarregue de tornar inteligível fases de assuntos decisivos da existência que não são unicamente súmulas do passado mas matéria da vida social, do momento em que estamos.
A oposição entre o instante e o tempo longo-vagaroso deixa-nos perante uma dialéctica da duração. Não obstante, nota, paradoxalmente, que não se privilegia uma forma historiográfica sobre outra, e, por outro lado, que a história lenta vai sedimentar uma hierarquia causativa entre tempos que concentram ‘todas as fragmentações do tempo da história’ e ‘se compreendem a partir dessa profundidade, dessa semi-imobilidade’.
Quanto a mim, esta ideia é inseparável de uma outra que tenho vindo a aflorar, estoica, e que Nietzsche adapta a si, intuitivamente como fez ao longo da sua obra, de eterno retorno na génese do seu projecto de transmutação de todos os valores [Umwerthung aller Werthe] e que surge pela primeira vez nos escritos de 1886, como subtítulo de um dos seus cadernos para uma obra incontornável que Nietzsche tem como objectivo escrever e que virá a ter como título A Vontade de Poder [Der Wille zur Macht].
Nietzsche era o filósofo da intuição, não sendo um grande bibliógrafo foi criando e adaptando a si todas as imagens e figuras que pudessem corresponder à suas percepções por instinto – de Dionisio ao eterno retorno e à vontade de poder – para as ir eliminando de modo continuado.
É com a ideia de transmutação de todos os valores salvaguardada que ele prevê quatro obras – O Anti-Cristo, O Imoralista, Nós que dizemos sim e Dionisos. Apesar de só o primeiro desses livros ter sido terminado a 30 de Setembro, esperava-se que o filósofo alemão se empenhasse nas outras obras planeadas que fechariam com chave de ouro a quadrilogia, porém isso não sucede.
Se no eterno retorno nietzschiano, brevemente formulado primeiramente em Assim falava Zaratustra acerca do programa de transmutação de valores, há um cordão de seda entre um catecismo niilista, enquanto crítica de paradigmas axiológicos da cultura ocidental, e o tema da morte do ser-humano – este mesmo que tem nutrido muita da crítica cultural contemporânea, como não podia deixar de o ser [pós e contemporânea, porém velha], sobre humanismo –, também é seguro afirmar que essas reflexões têm excedido em muito o universo exegético de Nietzsche. Não é isto que acontece com todos os escritos destruidores? A repetição infinita de sucedidos é o nervo do texto, todavia, excluindo em textos publicados depois de 1886, como o aforismo 56 de Para Além do Bem e do Mal, onde implicitamente [capítulo último de Crepúsculo dos Ídolos] o lemos na nomeação autoral, 'aquele que ensinou o eterno retorno', Nietzsche nunca legítima, tampouco encerra como doutrina, a formulação.
O professor de filosofia Nuno Nabais, num encontro realizado no Goethe Institut de Lisboa em Abril dos anos oitenta, socorre-se de uma interpretação pragmatista dada pelo filósofo e sociólogo alemão Jürgen Habermas para explicar de que modo ‘uma interpretação particular do eterno retorno no conjunto da reflexão sobre o niilismo, organiza em grande medida o debate sobre a condição pós-moderna. Enquanto o programa de transmutação for identificado com a inspiração de Sils-Maria, não só o seu significado ficará comprometido pela obscuridade daquela ideia – a um tempo representação cosmológica, imperativo ético, ficção apocalíptica e símbolo dionisíaco – como será sempre possível circunscrevê-lo a mais uma nova mitologia do que a um dos mais lúcidos diagnósticos do processo de auto-dissolução dos modelos de legitimidade da cultura’.
Até podemos reafirmar o célebre escrito do sociólogo da escola de Durkheim François Simiand (1873-1935), quando nos diz que o saber historiográfico ‘é um conhecimento através de vestígios’; mas qual é a relação entre ideias de pessoas não íntimas e os seus feitos que não o é?
A pedra-de-toque será acudir o pensamento que não é o mesmo que criar novos discursos mas novas perspectivas. Pensar e criar uma nova visão das coisas e não perspectivá-las, apenas e só, segundo uma discursividade.
Acolher, então, o menos espectacular, o mais inquieto, o que aliar fontes primárias e coevas, pegadas ou fragmentos de percursos pessoais, documentação fotográfica do passado ainda presente desenhada em sinais ou por traços tornados perceptíveis; o que incluir rastos percepcionados por nós numa altura posterior à existência das coisas surpreendentes, o que reflectir os impossíveis de captar no exacto tempo em que as acções dão sinal de si, é uma demanda. Com a nossa interpretação exaltada e provocatória ou com a que emerge apenas como fósforo que se inflama em subidas de temperatura, tudo é passível de se converter nas coisas realizadas, acontecimentos ou factos históricos, a que alude a historiadora Margarida Sobral Neto.
Por muito que tenhamos como sílica, sedimentar, preciosa, a narração histórica sabemos como até o historiador francês Paul Veyne (1930-2022), que se reclama da Escola de Annales, se opõe a Braudel enaltecendo, antes, uma cultura teorizante no ofício bastante distante da apresentada por Bloch. À prática profissional de Bloch Veyne opõe a discursiva, à verdade científica a intriga, ao trabalho colectivo a obra individual, à solidariedade o fundamento, ao método uma filosofia pessoal, ao relacional o rompimento, à justificação a liberdade pensante, ao trabalhador o autor [o artista, junto].
O que é impossível é continuar a aceitar esta tentativa de não conciliação da vontade de poder, seja na linha de uma ética da vontade de Baruch Spinoza (1632-1677), ou na da espontaneidade, radicalidade, a sua propensão de demarcação independente, de uma finalidade inseparável do sujeito, quando o próprio problema de Nietzsche consiste na conciliação das dualidades de perspectivas mantendo o princípio da instantaneidade de poder.
Regresso à senzala e à casa-grande, interessa mais mostrar ao que se vem que zombar ministrando quem já lá estava.
É confuso? Talvez seja. Toda a história tem acolhido uma mistura de sentidos que não consegue captar com nitidez os sons e as alturas. Convém admiti-lo para encarar sem pejo espirais e os eternos retornos dos estóicos.
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