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Fragmentos

Em dois mil e vinte, à conta da pandemia, fortaleci alguns laços com amigos e recuperei projectos protelados. Entregámo-nos aos dias lentos percorrendo-os como ficheiros diferenciados lado a lado. Por falar em ficheiros, e suscitar memórias, reencontrei-me com observações que me acompanham desde criança acerca da impetuosa justiça, e com a fé cristã, a morte, o suicídio, os preconceitos, as supremacias. Os anos têm passado demasiado rápido; o de dois mil e vinte avolumou velhos, duradouros, confrontos, agregados ao carácter bidimensional de um ensaio por cumprir, iniciado faz agora quatro anos. Revistar acontecimentos e aprimorar a prosa no decurso da calamidade global, enquanto outros, faltando-lhes vias melhores, partiram no cansaço de existir, tem dado alguma luta.
Durante sucessivos confinamentos, num escritório longe de Portugal, há um amigo que cedeu os dias ao ecrã do computador, nele lemos e discutimos quinzenalmente as notícias do mundo no jornal lá da terra de que que somos assinantes há trinta anos, conhecemos uma vizinha que perdera o cão, com uma amiga discutimos o que fazer à casa de Coimbra onde ela já não quer estar, recebemos as composições e ideias de um filho imaginado cuja demanda principal continua ao fim de três anos igual, um dia ser músico reconhecido em Londres, e indicações mais prosaicas da mãe do filho imaginado. Vista do exterior considerei mais os amigos de há muitos anos próximos apesar da distância, quanto mais não fosse por trazerem com eles a coragem em carência desde o primeiro confinamento; e também doutas sentenças, cartas perdidas e demais correspondências electrónicas trocadas. É como se um núcleo psicoafectivo remanescente, e uma ideia, persistente, de um fim adiado nos motivasse a voltar aos ensaios engavetados e outras tarefas não cumpridas.
À medida que escrevemos redescobrimos a raiva, os medos, as metas, revelações sobre o poder transportadas pela georreferenciação inter-humana e valiosas heranças — uma pequena biblioteca familiar construída a título de alguns sacrifícios, cordões sensacionistas de ligação à gente da terra, e até uma amizade quase maternal com Margareth, a vizinha cabo-verdiana, amamentada com os fonguinhos e donetes à sua moda. Toda a minha gente anda a colar as mágoas aos cacaréus moldados sob a luz de uma candeia de azeite na noite longa arrastando-se na fúria incerta com que busca edificar novos rumos depois de algumas perdas, mas... ainda temos o melhor, algum sentido de humor.
O encontro com a memória pessoal e colectiva foi frequente em muitos autores entre-geografias, entre-estéticas, entre-mundos ideológicos e historicidades que me marcaram em particular, e em especial a segunda metade do século XX português. Estando no epicentro desses acontecimentos históricos marcados pela mudança e pela incerteza esse encontro aparece, então, intimamente relacionado com o património imaterial e afectivo, com o passado visto a partir do presente mas também pelas nossas expectativas de apropriação desses sinais, de jogos comunicacionais ou correspondências entre tempos, entre o que é visível e o que é imaginado, o que é temporário e o que permanece; é com essa noção, que repassa vários campos artísticos até hoje, que tenho lavrado.









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