Avançar para o conteúdo principal

Fragmentos

O imenso comércio do nada II 
Arrisco a leitura de que a parte da produção intelectual, artística, ou culturalista, mais sonora, nos anos setenta, oitenta, noventa, e mesmo na primeira metade dos anos dois mil, se restringiu a pouco mais que ideologia, ou a um argumentário que se propôs deslindar, mas em primeiro reforçou, os nossos preconceitos.  
Ensaios de natureza empírica que se ativeram sobre fontes próximas, ou factos apresentados, não estiveram propriamente em consonância com as ideias de diversidade ou heterogeneidade democrática superficialmente defendidas, mas antes com uma cisão de posicionamentos e uma lógica divisória de trincheiras estéticas e ideológicas, por via dos quais se ensaiaram argumentos, algumas vezes precipitados, a respeito de assuntos mais e menos políticos como os de identidade, género, classe, ou privilégio. 

Arrisco que nas artes o que imperou sempre foi um discurso analítico, racional, como se fosse o único caminho desejável ou expectável, o caminho a eito. Aquele que torne a obra de arte objecto racional adaptando-o às limitações mentais de quem teoriza, jamais a um encontro com o desconhecido, talvez por isso tenhamos chegado aqui: à disseminação de produtos textuais que desprezam a poética (intuição) por não estar relacionada com a razão; talvez também por isso os filósofos tivessem antes tanto medo dos artistas, uma vez que a arte já seria para os artistas uma forma de filosofia, uma filosofia intuitiva. Neste sentido, até Platão poderia ser acusado de ter posto fora da sua República artífices e poetas ao apontar-lhes a mimesis.
Se retrocedermos nesta divisão e optarmos pela convergência, os lugares privilegiados para a disputa de narrativas sociais passariam a perambular entre o da academia e o das artes intuitivas, e, como tal, representariam uma ameaça.
Ensaiar uma fundura omissiva é parte do processo, somos mestres ignorantes, disse Rancière, estarmos tranquilos quando o desnudamento ocorre, gozar da virtude de cair durante a purga, divertimo-nos com a impudicícia. Desconsiderar canónicos e acanónicos. A joeira acontece de tempos a tempos no campo das ideias à volta dos universos artísticos, explicando em si, nessa evolução dos entes, a queda, ou as linhas de quebrantamento dos fundamentos, ou a sua inutilidade, se conviermos que somos fotografias truncadas de determinados tempos que se vão repetindo. E é, assim, que me ocorre uma outra linha de sentido, repescada por Jerrold Levinson de uma obra de C.I.Lewis que o filósofo de arte considerava subestimada: uma vida boa no seu todo...é algo cuja bondade ou maldade não se deixa imediatamente ver, em momento algum, mas somente pode ser contemplado por um visar imaginativo ou sintético da sua qualidade total...
Mas, é no valor intrínseco e sobre altercações da natureza e do alcance desse valor como sendo o centro da teoria do valor, que a perspectiva de Levinson tem, a meu ver, mais interesse por também a ter imaginado urdida e débil. A fantasia de que algo é valioso em função de nada mais, mesmo sabendo que não há consensualidade naquilo que deveria, ou não deveria, dilucidar tal ideia, alberga sempre pontos mais ou menos unânimes que se propõem burilar extrinsecamente valores inerentes, tidos como essenciais, a algo que entendo tão arbitrário como a verdade, a virtude, a beleza, o prazer, a fruição.
 


 

.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Fragmentos

O Imenso Comércio do Nada XX   É preciso esquecer para que tudo volte como novo Há momentos em que apetece deitar fora todos os fonogramas recentes com extensas durações de notas musicais para fazer o que uma só faria, ou, meramente, não deixar vir, eliminar antes que se entranhem, como apaguei há duas décadas o açúcar branco e a carne.  Por vezes parecem tentativas preocupadas apenas em manter os becos sem saída de outros, uma obstinação do tradicionalismo; uma tradição que se gozou de vanguardismo foi por não ter pretensões e não almejar ser canonizada. Uma tradição cuja face mais visível até podemos transferir para o presente sem nenhuma demanda extraordinária estilando-a por aí e cantando ao céu, ao sol, à chuva, ‘aqui estou eu fora do resto’. Camaradas, não estamos fora do resto se tudo hoje forem restos de restos de outros momentos e de outros gestos.  Quem passou por um conservatório fora da capital, nos anos oitenta e noventa do século passado, viu-o suspenso no tempo anterior

Fragmentos

          O Imenso Comércio do Nada VIII À procura da Ideologia democrática enquanto trauteia Cuidado Casimiro, cuidado Casimiro cuidado com as imitações...         A democracia tem cancro.   Se todos os pensamentos são fluxo é intolerável pôr-lhes uma cerca.      Num meio pós-cultural tão exíguo como o português, muitas das mulheres que exibem como pensam fazem-no sob o jugo da adaptabilidade. Mi steriosas, guardam todos os trunfos para quando acharem melhor  tirar o tapete às falsas contrapontorias de quem nunca largou o reino da mediocridade humana, nem famílias com heranças nefastas ou as uniões de factos sociaizinhas. Toda a mulher sabe que ser chulo social é uma grande valência, não interessa tanto a vocação, a aptidão,  a magia de ser sem cedências. Sabe que num ambiente assim, importante para um chulo é passar de fininho pela vida, evidenciar a sua existência fingindo que a viveu para lá das ruminações características das psicoses, não deixam de ser formas de vida  humana, tal

Fragmentos

O Imenso Comércio do Nada XIII:  moral intergeracional Ontem no café do meu bairro um vizinho, ex-militar, combatente de Abril, dizia-me no seu jeito encanitado: – O activismo de hoje crê ser o grande beneficiário do progresso. Acenei mais ou menos afirmativamente, mas com uma provocação: – O senhor estaqueou o andamento no Bloom d’ A Cultura Inculta ? Terei dito algo mais, circunstancial de certeza, não consigo sequer lembrar para poder reproduzir. Acho que o compreendo melhor hoje do que há um ano, altura em que me mudei para este bairro. Cada vez mais fala-se muito sobre pouco, é um falar à superfície, uma fala reservada sempre que se pode; garantindo alguma inviolabilidade a uma espécie de teleologia que se reconstrói ou metamorfoseia amiúde (sintomas de uma patogenia chamada capitalismo, diria um amigo). Sentem algum desdém pelos combatentes de Abril? Parece-me, antes, que tendemos a sobrevalorizar uma militância que uns tiveram certamente mas outros não, colhendo até hoje frutos