Avançar para o conteúdo principal

Fragmentos

O Imenso Comércio do Nada VI

Ideias de reforma e progresso, de justiça, equidade, tolerância são imanentes? Julgo que sim. Poderão sê-lo. Como a constatação de que a realidade é dura, cruel, e qualquer tentativa progressista, como entendo que o foram, não exclusivamente embora deles esteja próxima desde início da juventude, tanto o marxismo como o socialismo de fileira revolucionária. 

Miúdas da minha criação, o cinismo começa a ser, de resto a par da memória e da inteligência artificial, a melhor faculdade humana deste século. Ainda não me cansei de escrever a gritar outra espécie de canto, cacofónico-delicado, recuso-me a pertencer à colectividade pacífica de revoltadas mourejando o dia inteiro indignadas na cadeira com a mesma forma de sempre. Lá nisso esse contista, aparentemente datado, tão socialista e patriótico, privilegiado na cidade serôdia, que só por acaso foi aquela onde nasci, teve pontaria. Mas, se disso não passou até hoje, é porque nem o romantismo cívico da maior agressão de todas, a emigração, funcionou.

Os sistemas de que digo estar próxima desde a juventude neste país têm causado calafrios. Vejo-os a tornarem-se meros sistemas mais sofisticados de chantagem e extorsão. Assim, neste ambiente político decadente, a tolerância corre o risco de não significar nada; já que a justiça se tornou uma impossibilidade. A suprema exigência de criarmos uma alternativa deixou de ter fundo, nestes termos, sejamos claras quanto a isto, não haverá nada para oferecer num sistema sem nada para oferecer além de falas repetidas, que até favorece todo o género de infiltrações e infiltrados, que vai papagueando as mesmas falas e os mesmos lugares, sem qualquer função.
Ficaremos numa espécie de ecolalia dos conceitos, uma organização desorganizada de ideias que achámos positivas em si. Por ora, não acho que nos possamos dar ao luxo de criar mais alternativas para que as peças do sistema que quisermos derrubar as continuem a consumir e extirpar produzindo monstros e acéfalos.


 



Comentários

Mensagens populares deste blogue

Fragmentos

O Imenso Comércio do Nada XX   É preciso esquecer para que tudo volte como novo Há momentos em que apetece deitar fora todos os fonogramas recentes com extensas durações de notas musicais para fazer o que uma só faria, ou, meramente, não deixar vir, eliminar antes que se entranhem, como apaguei há duas décadas o açúcar branco e a carne.  Por vezes parecem tentativas preocupadas apenas em manter os becos sem saída de outros, uma obstinação do tradicionalismo; uma tradição que se gozou de vanguardismo foi por não ter pretensões e não almejar ser canonizada. Uma tradição cuja face mais visível até podemos transferir para o presente sem nenhuma demanda extraordinária estilando-a por aí e cantando ao céu, ao sol, à chuva, ‘aqui estou eu fora do resto’. Camaradas, não estamos fora do resto se tudo hoje forem restos de restos de outros momentos e de outros gestos.  Quem passou por um conservatório fora da capital, nos anos oitenta e noventa do século passado, viu-o suspenso no tempo anterior

Fragmentos

          O Imenso Comércio do Nada VIII À procura da Ideologia democrática enquanto trauteia Cuidado Casimiro, cuidado Casimiro cuidado com as imitações...         A democracia tem cancro.   Se todos os pensamentos são fluxo é intolerável pôr-lhes uma cerca.      Num meio pós-cultural tão exíguo como o português, muitas das mulheres que exibem como pensam fazem-no sob o jugo da adaptabilidade. Mi steriosas, guardam todos os trunfos para quando acharem melhor  tirar o tapete às falsas contrapontorias de quem nunca largou o reino da mediocridade humana, nem famílias com heranças nefastas ou as uniões de factos sociaizinhas. Toda a mulher sabe que ser chulo social é uma grande valência, não interessa tanto a vocação, a aptidão,  a magia de ser sem cedências. Sabe que num ambiente assim, importante para um chulo é passar de fininho pela vida, evidenciar a sua existência fingindo que a viveu para lá das ruminações características das psicoses, não deixam de ser formas de vida  humana, tal

Fragmentos

O Imenso Comércio do Nada XIII:  moral intergeracional Ontem no café do meu bairro um vizinho, ex-militar, combatente de Abril, dizia-me no seu jeito encanitado: – O activismo de hoje crê ser o grande beneficiário do progresso. Acenei mais ou menos afirmativamente, mas com uma provocação: – O senhor estaqueou o andamento no Bloom d’ A Cultura Inculta ? Terei dito algo mais, circunstancial de certeza, não consigo sequer lembrar para poder reproduzir. Acho que o compreendo melhor hoje do que há um ano, altura em que me mudei para este bairro. Cada vez mais fala-se muito sobre pouco, é um falar à superfície, uma fala reservada sempre que se pode; garantindo alguma inviolabilidade a uma espécie de teleologia que se reconstrói ou metamorfoseia amiúde (sintomas de uma patogenia chamada capitalismo, diria um amigo). Sentem algum desdém pelos combatentes de Abril? Parece-me, antes, que tendemos a sobrevalorizar uma militância que uns tiveram certamente mas outros não, colhendo até hoje frutos