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Fragmentos

 





Perséfone, pintura Elagabal Aurelius Keiser





FEMICÍDIO
Soraia Simões de Andrade
no prelo




I

Muitas mulheres escolheram o suicídio para não serem capturadas pela turba e convertidas à monogamia à força. 
Onde se escondeu a pecaminosa que não a encontro há horas e quase me enlouquece? Será que a provocar me anda perpetrando o ego tal e qual as coptas que vivem no medo? 
Os enamorados do século vinte e um não se consolam com fotografias das férias nas redes sociais.



Perséfone
Tinha em si a impermanência
Das coisas do mundo
Se a alma não fosse anciã 
para onde correria o medo
mergulhado nos teus olhos
risonhos tão subterrâneos?
Tocava tarola no belvedere
Pedal eléctrico não era
Gaveta aberta goela presa
Virgem ficou
pr'apoiar o meu no teu pé
Sem pão não havia tesão
nem  jazz aquecia
nem vinho adormecia
A ira ao bácoro
capado, cómodo, agreste
escrevia ou cantava:
Vercoquin et les amis

Nix
Tingira na parede do Motel outro lado do mapa
antes da fatídica noite,
a heteronormatividade é a origem de todos os fascismos.
Os mais pobres episódios da História 
momentos de normas sexuais compulsivas extremas.
Limparam a sua memória. Nós aceitámos.
Talvez por em crianças sentirmos uma compaixão por aquelas bestas,
pelos seus longos e entediantes discursos.
Vivíamos de olhos  pregados no pai obediente a uma liberdade imaginária.

Nem a morte foi democrática
Nem o fim de noite  poético
Nem  a tintura ao Cesariny
mudou luar de lobis[H]omens
Nem o traço de Leon Bakst embelezou o silêncio
Nem supriu memórias às lutas
Nem dentro nem fora
Nem mãos nem cartas
Nem sina nem gemas
Nem a verdade das pedras preciosas 
ou engenho de uma boa ficção.
Expunha telas labirínticas
e a vida devolvera-lhe toda a geometria.
Plena sem horizonte.

Héstia
Toalha de linho passada
Harmonia do corte
Um canivete, r i t m o
l e n t o
Separava cada grainha
d'uva sumindo sementes
no espaço: tempo longo
Compunha as bagas
que sopravam no interior dos fios de um tecido cortado
As desculpas de ver só glória naquele olhar,
descartada museografia ou precárias ruínas,
deixara dó e desculpas: meios conservaram este fim.

Eos
Algumas vias escravizavam
no instantâneo reclamo
pronunciando o ruído
do mapa-mundo
Vivemos mitos antigos tarde
obscenos esquecidos
Na nossa mitologia planou a 
irrepetível alvorada 
transformando Titono velhaco em cigarra 
A nossa história seria um testemunho
Mesmo que fracassado à passagem do tempo


Qualquer relato das vítimas era um buraco bem definido, uma experiência de partilha que arriscara ter um pequeno fulgor no horizonte.
Não existira falta de coragem, apesar de tudo, a linguagem dever-lhe-ia acrescentar algo ainda mais por via de uma intenção feérica.
Qualquer deusa agora sabia que para se ser limpa, menos hermética, menos opaca, era preciso que na sua observação dos chulos coubessem superfície e profundidade, voltar o que havia de mais precioso na prostituição urbanística para o exterior. Era preciso que a torre de uma certa aprendizagem viesse abaixo.
Entre a dramaturgia da perda e a poesia dos ganhos, as vítimas escolheram ambos. Mais do que deixar ir para não mais ver as sombras, os vocábulos morreram na falta de tudo; água perdida, punhos contraídos, almas secas, corações gastos. Manipuladas pediram que lhes rasgassem páginas quiméricas. 

Hera contra Afrodite
Farei tudo para que entre na língua os barulhos 
da vida terrestre
mimética, excêntrica e musical
Todos os abruptos, sonoros, e o transcendental
Sussuro, ronrono, mujo
assobio, guincho, cuspo
Nunca, nunca, papagueio
O matraquear, truz truz,
é a lamúria e o sibilar das choramingas:
Catrapisca
Desdobro silábica mente
o tio, o popó, hey beto,
psiu! Caluda, maltês!
Raios eclipsem tua matraca
a r d i l o s a.
Gancho metálico ao galante
falante alheado de sua presença
Enquanto tal: qual é o mal?
Tã tã, puff! Sincroniza, filho:
a tua interlábia secou. Não há
álibi sónico, nem buzina, nem riso, nem choro, nem socos, que te acudam.
És um mundo morto, nem descobertas nem Da Vinci, nem árduo espirro nem influência, nem explosão, choque, nem confronto nem mistério: Boummm!





II



Catorze de Fevereiro de 2024
Meu Caro Amigo:
os sonhos estão caros, muito caros.
Pedem-me calma, que te enderece esta carta, dizem que talvez tenha exagerado nos últimos sete anos de bom sexo, sete perdas, sete amadas, sete absusadores. E, por isso, não foi em vão todos os poemas amordaçados ou demasiado conscientes. Tinham apenas pedido que duas ou três palavras minhas entrassem de graça no parque dos tontos. Entraram muitas mais, como sabes. O único território em que nós – incluindo vocês, deusas antagonistas da nossa classe –, podíamos justificar a estratégia de quem nos rasura, os seus comportamentos realizados em privado dissonantes dos apresentados em público, era o Comité que impedia que fosse feito mal às outras. Afinal, era onde nasciam essas profanas, as palavras.
Na orla do espectáculo tudo continua a acontecer, mas é lá dentro que o prazer reina e a vida se reergue em espiral. Devagarinho, em nome da classe e de uma ética, em rituais exuberantes e trancados aos de fora, surge a última oração; sentou-se hoje ao meu lado um paraíso no inferno, quando dei por ele já tinha fugido.
O mapa do grande ethos está entre a desesperança e a fragilidade. Não é fácil segui-lo; às suas linhas ténues, delicadas, mesmo quando gritam força força força!
E nós ali paradas no meio da multidão da noite, do desespero, despertamos um tamanho suspiro.
Uma escalada nunca antes vista. Não há escutas nas linhas que desenhamos com os dedos maiores da mão esquerda. E na transpiração dos poros adormecidos estamos, apenas, em boa companhia.
Onde a serra não nos corta, a espada não separa, a lâmina não decepa, o alarme não toca.
Será preciso falarmos de aventuras onde elas crescem; a pergunta é: e já são embondeiros floridos?
Por cada irmã que perdi, mais uma página em branco, esta vontade de te dizer, por meio de um eu escrito, um nós. A folha e a ponte, até nos perdemos de vista. A ponte de onde saltou Afrodite, a todas as nossas amantes demos o nome de uma deusa, se bem me lembro foste tu quem teve essa ideia. 
Os carros prosseguem, buzinam furiosos durante a noite, instala-se a surdez do poderio no peito, a lua esbatida e o sol mal acordado lembram-nos que a militância, o nosso partidarismo, tem produzido uma vontade de nada resolver. A rede de apoio só será restabelecida quando formos capazes de acudir a vizinha do lado.
Todo este teatro de aparências é contra natura. Tens visto como a geada nos galhos das árvores surge? Tão ténue…E o labirinto que percorremos é um mundo insalubre, a respiração do musgo de sete em sete semanas muda o timbre.
Que sentir, ver, ouvir, ficará de fora quando todos os telhados se partirem e deixar de haver um lar?
Junto ao saguão está sitiada a desmemória das raízes. Nas alturas de pedra, sentada ao sol, descarto todas as possibilidades materiais. Ainda me amedronta não saber que página seleccionar para te trazer perto, meu amigo, e afastar-te  dos que te usam para chegar a mim. Que palavras escolher para as mil revelações por fazer?
Com as minhas mãos se entenderá a mais funda e irrecuperável coragem de manchar o esmalte na nossa velha mesa sindicalista de domingo.
Como dizem os monges, perante o mal não vejas, não oiças, não fales. Por favor, age. Garante-me que ages.
Mesmo que depois te interrogues sobre o que fazer às mãos, onde as deverás meter depois do nojo. Um espanto de mãos, levadas até aos limites a todos os contornos do meu corpo.
O tacto será a tua tentativa de descoberta do que sentiríamos se nos voltássemos a tocar. Reconhecemos todos os fios que prendem a vida, juntos garantimos que as costas de uma mulher com outra mulher não são para curvar, por isso para quê dobrar as tuas quando mais preciso de ti, hirto? Tu que estavas quando o pai gritou o nome dele enquanto a sida lhe comia o espírito. Não esperava esse recatamento de ti, essa total ausência de investimento em nós; sem tais panfletinhos, ou as capitulações da nossa mitologia. Era já tempo de teres entendido que toda a nossa política nasceu com o assassinato da coluna vertebral, nasceu para regulamentar a ordem e evitar o surgimento das ditaduras. 
Estranho que não reconheças já no Totem e Tabu o logro do racionalismo, era impensável que alguém como tu, que nos apresentou Freud desta maneira, moeu a mona com Lacan demonstrando o que ele demonstrara: a impraticabilidade desse projecto designado conhecimento, viesse agora pedir às nossas mãos prudência, que continuassem presas à cabeça e a cabeça as prendesse. Logo mãos que como as tuas falam, e quando escrevem sublinham o quanto foram forçadas pelas variadas contingências. Nos oráculos o espírito deseja ter sempre a palavra, dispôr dela para se repreender. Por que razão deixaste de falar?
Deste modo, nem as pregas do desagrado nos teus dedos experientes me ouvirão mais sorrir.
Apetece morder todas as tuas cartas de lirismo especulativo; conheço há muito esse reino estrangeiro, quis abandonar essa morada e não por causa do salitre ou das inundações frequentes. 
Onde está a tua voz translúcida para lá da costumeira grilheta de palavras? Essa voz onde nos compreendemos noutros sentidos?
Ainda me lembro do provérbio chinês que nos enviaste aos dezoito, versava: se te sentares na margem do rio verás a cabeça dos teus inimigos. Rolar rolar rolar, a rolar.
Se essa altura chegar, mete as mãos limpas nos bolsos e canta, muito e alto. Canta por nós. Canta para nós.
Sei que virarás a página mais rapidamente, quando esse dia chegar não conseguirei prometer em uníssono, na primeira pessoa do plural, que te irei acompanhar. Duvido que recupere as benfazejas estimulações de uma voz doce e letal.
No coto da amarra, aquela que apelidaram de cisne do arquipélago das nove ilhas, possivelmente por lá não ter sido parida, uma pedante sem brio, gorda como um perú natalino e magra de ideias suas, a quem quase um século depois de morta as elites vieram chamar revolucionária, embora a nossa materna memória dos fumos toscos, o forno a lenha da nossa avó Laura, mostrem como essa mulher entornou água em farinha de copo e meio e a testa, superfície de suor, só lhe reservava a lembrança do azeite vertido para não doer na cabeça a vida. Uma das mais sinistras diletantes produzidas pelo Estado Novo, inimiga das mulheres belas sem atilhos nos movimentos da mente, onde encontramos as libertas do estertor luminário e dessas aventesmas do moinho a roda quente num gira-gira constante em torno do centro do umbigo.
A criatura silva dos caminhos de cabras, de ventrudas patilhas e toda a sua indescritível gramática: adjectivos de encher em virtude da maquilhagem no seu ar artificial. Todo este exercício de presença figurativa previsível permanente aproximou-se do dadaísmo involuntário: incúbias retóricas de léxicos vazios.
Temo o lancinante suplício do reencontro, por já ter algum talento para  farejar os lorpas, o seu ignóbil entretenimento, a política parlamentar, a taberna como ideário livresco, o futebol enquanto negócio de quem nos explora.
Quando te conhecemos, espírito esquálido, alinhavas no ménage baladeiro experimental e ficávamos contigo até ao declinar do dia. A curva trinchava as tuas poucas defesas sob uma luz decrépita, os cavalos e as éguas a trote: tudo da tua imaginação, como dizias. Encontrei num rolo antigo o vinho, o gelo, o copo, o zero do som, tudo no mesmo lugar ermo de terra feito e amadeirado; o ressuscitar dos sentidos dela, a sua voz.
Escrevo-te sem certezas quanto à tua resposta, a escrita germina nos degraus escorregadios da resistência. Há melaço recolhido cuidadosamente do ano anterior, e no corpo, léxico dividido por cesuras, que texto queremos, que casa desejamos depois do corpo perdido?
A coragem é uma virtude tão alta diante da perpétua ameaça da sua perda que não precisa de exuberância ou louvores sobre a sua firmeza.
Perdemos o sabor dos sons de palavras superlativas, não aquele sob o signo da fabulação, mas todos os outros que a experiência conseguiu atapetar.
No ruído em que melhoramos agora os corpos, irmanados numa recompensa mútua e célere de gurgitares, nós e as pequenas quedas de água, instáveis e agressivas. Foi, por isso, preciso ser mais forte para não cair no ridículo. 
E a consciência deitada na almofada absoluta, a temeridade, fortim de olhos semi-abertos, vendo o cortiço de mel apodrecido, homens repelentes desamparados sombreando o leito, pelejando por só abdicarem da noite no fim da estrada. O grão miúdo do futuro no jugo passado, sem mais vívido chão. 
As sementes que nos deram estes frutos deram-nos rumo melhor para a vontade. Passados os muitos aniversários o perfume dos nossos frutos, depois de colhidos, também se evolarão.
Se nos voltarmos a sentar nas gotas de orvalho suspensas nesta relva que aparavas no Outono, pode ser que ainda nos consigamos ver por dentro através de espelhos das nuvens dispersas, onde adormecíamos os três e acordávamos. Tão leves. 
Lembras-te quando o frio não foi motivo de abandono e habitámos aquele lugar medonho com réstias de sol na luz matinal coada? E seguimos os braços do cárcere onde esperavam as visitas?
Na verdade, somos bastante estranhas a nós mesmas, não sabemos dos mistérios de cada alma e só quando nos confrontamos com o abismo conseguimos aferir qual a matéria que nos tem aguentado.
Disparei em auto-defesa. Não aguentei a paixão da violência. Mas, faltou a coragem para de mim dar cabo. Ou de ti.
Tua,
Ártemis
                












































































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