Avançar para o conteúdo principal

Fragmentos

        

O Imenso Comércio do Nada VIII


À procura da Ideologia democrática enquanto trauteia

Cuidado Casimiro, cuidado Casimiro

cuidado com as imitações...




       A democracia tem cancro.

 Se todos os pensamentos são fluxo é intolerável pôr-lhes uma cerca.

    Num meio pós-cultural tão exíguo como o português, muitas das mulheres que exibem como pensam fazem-no sob o jugo da adaptabilidade. Misteriosas, guardam todos os trunfos para quando acharem melhor  tirar o tapete às falsas contrapontorias de quem nunca largou o reino da mediocridade humana, nem famílias com heranças nefastas ou as uniões de factos sociaizinhas. Toda a mulher sabe que ser chulo social é uma grande valência, não interessa tanto a vocação, a aptidão, a magia de ser sem cedências. Sabe que num ambiente assim, importante para um chulo é passar de fininho pela vida, evidenciar a sua existência fingindo que a viveu para lá das ruminações características das psicoses, não deixam de ser formas de vida  humana, talvez humanóide como me dizia um recém falecido amigo, mas não da vida temível, a do encontro com o nosso fim. 

Numa atmosfera exaurida é comum reinventar às palavras virtudes em falta como a de não ter palavras para quem, por não ser igual nem se meter à sombra dos dias de discussão tórrida, se rejeitou. É esta postura assaz enternecedora, bastante tosca, que faz a grande vontade ao censor sob o qual até o subordinado foi coagido a realizar os feitos.

Na pós-cultura é tão ou mais cómico quando a figura do censor se acha acima da censura, ou quando fala a partir de um corpo e uma vida que não são os seus, quando se exibe dando nota de um desconhecimento profundo das raízes de movimentações e acções que já tinham nome e feitio mesmo que os apaguem. Não é por nomeares a esquerda que és de esquerda, não é por ridicularizar a direita radical que não integras um movimento parecido, não é por falares culturalês que és culto. É ainda mais abjecto quando se auto-nomeia como parte daquilo que não se é. A ideologia não é coisa de encher papo e nada mais, não é coisa de que nos possamos demitir em forma de assim. De resto, esquerda-direita há muito que padece de uma patogenia agudíssima, a abertura a dialécticas que ruíram mesmo para quem milita, o afastamento dos seus, a sua cada vez maior ausência de conflitos entre os seus e eles. 

Há um cancelamento estratégico de quem pôs em causa as aldrabices culturais e os grandes timoneiros da fraude conjugam-se no plural. Há uma cultura do medo semelhante ao fascismo. Todas as pessoas que, ao percepcionar a hostilidade e a sabotagem de um círculo decadente, com cada vez menos representação no sítio onde se operam mudanças concretas, exposto às condições classistas e da diabolização do outro que não pensa nem cria em função de si, vivem alocadas a uma libertação imaginária. Uma condição oportuna e oportunista. 

Só é possível largar a castração pela anuência a um modus operandi a quem tem força de si, força de ser, de outro modo o  que cresce são as barrigas e os papos debaixo do queixo, não a coragem mas o delírio e o egotismo. 

Visões expandidas são realidades apenas quando se percebe que és tu e não o outro que fala, insistindo em não reconhecer no outro o que mora em ti.

Se se elege sempre o idioma da subordinação, normaliza-se a censura, insistindo numa movimentação serôdia e reprovativa da  real diferença. Aceita-se que nos copiem os sinais e práticas de há muito, aceita-se que o corpo sedentário com uma postura de superioridade relativamente à vida cale o que traz junto a si como pedra no sapato. 

A todas as almas cujos corpos tiveram a coragem de enfrentar o limite, tanto, ou mais, que o cirquinho simbólico, da falta de noção, do cancelamento estratégico de quem viver questionando por conhecer a fundo todas as manhas dos que vivem dos nutrientes de assimilação rápida, aplaude-se. Não se censura, muito menos cancela.

A insistência no ente anónimo é por si bastante cómica numa democracia, tem imensas semelhanças com o fascismo. É apenas mais colorida, não vemos preto e branco, lemos uma imensa mancha branca no preto, no que escapou, naquilo de que se tem medo.

Se há coisa que os fins de uma ditadura e de um longo processo de censura nos poderiam ter ensinado é que todas as pessoas têm nome, as que porventura têm sido as mais sagazes são aquelas a quem o pequeno poder e a chulice quiseram sempre retirar o nome e os feitos mais precursores. Dos democratas há sempre um rol de equívocos que o tempo se encarrega em trazer à tona. Um diktat patego destes tem os dias contados; todos os fenómenos, por muito sacanas que sejam, são substituídos rapidamente na pós-cultura. 

Que outra razão haveria para que, com uma suposta queda do fascismo há cinquenta anos, nunca mais dessemos por ele? Se ele sempre esteve entre-nós e naqueles que o criticam veementemente para se convencerem a si e ao espelho quebradiço onde se reflectem da sua queda, não haveria, não há, motivo algum para não o vermos.

A maior forma de censura do século vinte e um não é o silenciamento, mas o cancelamento. Não o cancelamento dos repertórios que já engrossam o cânone, mas de todos os outros que são um contraponto e uma crítica, irónica ou não, às publicações e mentiras de uma falsa diferença, aqueles  difíceis de agarrar por não servirem uma caricatura dos tempos sob a qual um chulo, pretenso timoneiro, alavanca a sua presença constante. Hoje como antes.

    Usurpam-se as vontades e realizações pessoais que convêm não ter por perto a retirar-lhes o holofote bêbedo, que ciranda de um lado para o outro à procura de si, retira-se doutros o que desejam, para não estragar o andamento muito desafinado que só será notório para quem tem um ouvido treinado. 

Se estamos dentro da vida é complicado estar dentro dela a avaliá-la, se assim não fosse, como o mundo é infinito e a nossa mente não consegue cobrir todos os mundos desconhecidos, estaríamos todos doentes. E muitos de nós estamos. É uma pretensão que gera doenças; esquizofrenia e anorexia nervosa, das quais toda a chulice sempre palrou conhecendo dos manuais, jamais por ter vivido tais dualidades  e por, elas mesmas, se deixarem cativar pela comunicação social do ridículo, sendo isso muito engraçado no grupo Impresa onde um podcast do Expresso (Labirinto) expõe umas figurinhas que acham ser o seu grande triunfo e a sua grande conquista em vida, a de termos uma doença mental, e assim vão desfilando umas alminhas que nem nunca chegaram a inferno algum por nunca terem saído do plano terreno nem desafiado o seu fim.

Até uma certa corrente da medicina menos arguta que de nós fala ancorando-nos a problemas de estética ou a um alheamento do mundo terreno, quando os dramas são muito mais profundos, complexos, incapacitantes, para quem os vive, nem sequer passam por aprovações corriqueiras externas, alinha neste diapasão atarantado. São outros desvios e outros mundos.

A esquizofrenia e a anorexia assumem-se como tentativas falhadas de ser avessa à alma mais desumana, matar o corpo numa altura é matar o fluxo de um pensamento que acreditámos nocivo. Termos medo do excesso de conhecimento por anteciparmos sempre os fins e acertarmos neles por antecipação, de ver o que achámos que outros não viram. Serão outra coisa noutro ente, noutro humano. Aqui foi, é, assim.

Não o expandir ao exterior, diminui-lo e enfraquecê-la para estar perto da perda e saber, só aí, aquilo de que a nossa alma é feita. Tudo o resto é cultura do entretenimento e necessidade de palco, muito palco. 

Se há coisa que a democracia em risco nos tem mostrado é o seu carcinoma papilar, diferencia-se pouco e é pródiga em destruir todo o tecido pensante e emocional distinto.

Como li recentemente, a sobrevivência já é uma vitória contra a morte. Não adianta andarem a pôr luz sobre os cadáveres. Essa curiosidade mórbida, digo-vos, é a fraqueza dos que se espantam pouco ou com muito pouco. Cheiro a corpo morto é o cheiro do medo e do imundo passado, cheiro a chulé é odor de uma vida limitadíssima e nas amarras de um fim comum, uma finalidade em que se possa rever, não tem nada que ver com colectivos. É uma fraude.

Nenhum fim nem nenhuma finalidade são comuns, mas únicos. É difícil quebrar com este marialvismo e esta chulice entranhados na medula sem nos expormos ao ridículo desses que não sentem mais que a imagem que o espelho já pouco devolve sobre si. Mas vale o esforço onde a alma não minguou.




Comentários

Mensagens populares deste blogue

Fragmentos

  Perséfone, pintura Elagabal Aurelius Keiser FEMICÍDIO Soraia Simões de Andrade no prelo I Muitas mulheres escolheram o suicídio para não serem capturadas pela turba e convertidas à monogamia à força.  Onde se escondeu a pecaminosa que não a encontro há horas e quase me enlouquece? Será que a provocar me anda perpetrando o ego tal e qual as coptas que vivem no medo?  Os enamorados do século vinte e um não se consolam com fotografias das férias nas redes sociais. Perséfone Tinha em si a impermanência Das coisas do mundo Se a alma não fosse anciã  para onde correria o medo mergulhado nos teus olhos risonhos tão subterrâneos? Tocava tarola no belvedere Pedal eléctrico não era Gaveta aberta goela presa Virgem ficou pr'apoiar o meu no teu pé Sem pão não havia tesão nem  jazz aquecia nem vinho adormecia A ira ao bácoro capado, cómodo, agreste escrevia ou cantava: Vercoquin et les amis Nix Tingira na parede do Motel outro lado do mapa antes da fatídica noite, a heteronormatividade é a or

Fragmentos

O Imenso Comércio do Nada XIII:  moral intergeracional Ontem no café do meu bairro um vizinho, ex-militar, combatente de Abril, dizia-me no seu jeito encanitado: – O activismo de hoje crê ser o grande beneficiário do progresso. Acenei mais ou menos afirmativamente, mas com uma provocação: – O senhor estaqueou o andamento no Bloom d’ A Cultura Inculta ? Terei dito algo mais, circunstancial de certeza, não consigo sequer lembrar para poder reproduzir. Acho que o compreendo melhor hoje do que há um ano, altura em que me mudei para este bairro. Cada vez mais fala-se muito sobre pouco, é um falar à superfície, uma fala reservada sempre que se pode; garantindo alguma inviolabilidade a uma espécie de teleologia que se reconstrói ou metamorfoseia amiúde (sintomas de uma patogenia chamada capitalismo, diria um amigo). Sentem algum desdém pelos combatentes de Abril? Parece-me, antes, que tendemos a sobrevalorizar uma militância que uns tiveram certamente mas outros não, colhendo até hoje frutos