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Fragmentos

 

O Imenso Comércio do Nada XVI

Arte de viver a Cantar

Vocês pensam no fim do mundo, nós pensamos no fim do mês...






Escrevemos, falamos, e criamos arte para que as ideias que achamos melhores não morram. O encontro com o diverso é custoso.

Exprimir em palavras saberes das coisas que consideramos extremas e celestiais não é uma moral? E intuir que quem pensa de uma maneira diferente se não nos conduz à criação de enredos nebulosos, de uma moral e de uma ética, não pode intervir num debate?

Se os outros não possuem os códigos para compreender o nosso mundo, o mesmo é verdade para nós, não temos todos os códigos para uma compreensão de mundos e experiências bastante diferentes das nossas, pelo que o mais proveitoso será disponibilizarmo-nos e ler os sinais que nos amedrontam, tanto ou mais que os que, por instinto, regurgitamos.

Todas as palavras ajuizam, não são por si togadas na existência humana?

Se o ócio e a suspensão do tempo histórico são favoráveis à expressão do pensamento, são, em simultâneo, das necessidades humanas mais difíceis de alcançar e, por isso, virtudes numa sociedade como a actual. Nem todas as pessoas dispõem do mesmo tempo para cuidar da sua revolta ou tratar bem a sua individuação e até para ser ‘uma colectividade pacífica de revoltados’ e contar histórias trágicas como a que nos diz faltar ‘o romantismo cívico da agressão’ é preciso, mais do que ter tempo, beneficiar do tempo que temos.

    As coisas que existem no mundo não existem fora dele, Furio Jesi disse-nos que ‘realidades colectivas objectivadas da classe dos explorados’ se tornavam ‘cada vez mais colectivas’ ao mimetizarem estruturas próprias da classe dos exploradores. 

    Podemos até ampliar ou reduzir as experimentações, os gestos, as possibilidades, e mesmo assim não viver mais a vida que a escrita da vida. A vida foi orquestrada desde o dia em que nascemos para nos fazer esquecer da questão-chave na parte instrumental da nossa partitura que é a da ruína.

    A primeira figuração da espécie humana é o enterro dos corpos [1]. Somos pessoas marcadas por um saber que os outros animais não têm, sabemos que vamos morrer.

    Por sabermos que vamos morrer, temos uma consciência diferente dos outros seres. Podemos criar arte, argumentar, reconhecer facilmente os ciclos e as colheitas, antecipar um desastre doméstico e a temperatura. Podemos execrar o ensino e mesmo assim decidir manter a aprendizagem.

    E isto podia ser uma vantagem, se ‘somos cadáveres adiados’ não interessa o tempo, mas o que fazemos com aquele que nos foi dado. Há pessoas que vivem setenta anos em profunda ataraxia e outras quarenta numa revolta aprofundada. Ambos os movimentos têm superfície e profundidade. Assim acontece com a linguagem artística e com a nossa vida.

    Ao contrário de outros animais podemos discutir ideias, mesmo estando privados de um ou mais sentidos, e por muito medíocre que consideremos uma arte, dificilmente apelamos ao não suicídio de pessoas com códigos diferentes dos cristãos-apostólicos-romanos. Tudo isto poderá ser lido ao contrário e de outras lentes, religiosas ou não. Apercebo-me que temos sempre muito a dizer sobre almas que desconhecemos, e uma vontade, ao fazê-lo, de turvar a nossa.

A democracia está em risco desde que existe. A imagem primeira do enterro do corpo é, ela mesma, uma conversa sem freio com o nascimento do corpo que teremos sido.

Quando há trezentos mil anos tiraram o ser-humano do centro da criação tentaram entender o que nos separava do resto dos seres. A nossa reacção, sabendo nós da irreversabilidade da morte, era sempre de choque, mas fomos e somos a única espécie a tentar honrar os seus mortos com duradouros rituais.

Ao enterrar o corpo há um cuidado em manter alguma coisa. Incendiar o corpo: simbologia do queimar das ideias, enterrar o corpo: ser digno das ideias que a nossa carapaça albergou, quaisquer umas. Creio que queimar livros, um corpo de texto, como queimar pautas e repertórios, como foi feito em algumas instituições públicas, seja um modo de matar a morte. Um modo preguiçoso, quando vimos e escutamos muitos vivos a viver à sombra dos mortos, é uma repressão post-mortem da arte.

Teremos em algum momento da democracia esquecido que a vida é muito distinta da civilização, que a civilização seria, como nos ensinou Friedrich Nietzsche, o que conseguimos fazer em vida. E é no campo da civilização que as disciplinas artísticas e sociais-humanas ganham um corpo próprio, numa abstração da vida e numa super-intelectualização, não encarando um outro problema: o intelecto é uma redução do mundo a um retrato salvo no disco, rígido ou não, é uma fotografia de uma linguagem num espaço ou altura, uma memória. É uma memória com a qual narramos Histórias.

A sociedade ultra-explorada que Marx tirou da sombra não poderia desvendar, como mais tarde nos veio a dizer Michel Foucault, que o poder podia ser positivo. Não é por isso que Marx deixou algures de ser um contributo essencial para captarmos muitos dos desafios durante a nossa vivência. Imaginem ir a um concerto ou ler um livro e o artista não ter gozado do poder de cativar um único ouvinte, nem um  leitor ou ninguém do público que pagou o bilhete? Seria frustrante. Sempre que atraímos outras pessoas com a nossa prosódia ou a nossa arte exercemos poder sobre elas, é, com certeza, um poder muito diferente do usado para punir as classes trabalhadoras, mas não deixamos de o ter, um poder e um sentir, sentirmo-nos pessoas poderosas. Onde há poder, não obstante os tempos e os lugares das histórias, há abuso e repressão. O mais comum, e mais fácil, será oprimir os fracos e não os fortes, desta categórica civilizacional é difícil libertarmo-nos, não por uma maldade intrínseca ao humano, é o humano a ser humano, e o humano a ser humano é capaz de diminuir o seu melhor e banalizar o seu pior, como ensaiou Hannah Arendt a propósito do totalitarismo e as suas origens.


Uma compreensão do mundo a partir de escalas orientais, ou de filosofias que não sejam as pré-socráticas e as socráticas, de culturas como a indiana, a chinesa, a portuguesa, a árabe, é impossível ser digerida por uma vida humana com os seus desafios mais íntimos. Mesmo que recorramos a outras escalas para mover as hostes de mundialização e globalização. Sem vida não há ser nem sequer existir dentro de outras realidades, no entanto, para quem se dedicou ao estudo da música, pode usar esses códigos adaptando-os às suas realidades. Daí decorrerão duas posições, a de que há uma abusiva apropriação dos sinais dos outros, até das suas estórias, é opressão na origem e exotismo no extravio;  e uma outra que nos diz que misturar é pôr luz noutros aspectos da realidade, noutras culturas, noutros corpos, noutras vidas humanas, noutras  sonoridades.

Qualquer instrumentista é atraído para a experimentação de credos distintos do seu, tenta alcançar sucessões de notas, ‘aperfeiçoar o seu som’, sabendo que as escalas criam várias possibilidades harmónicas e melódicas dando-lhe ferramentas de improvisação inquestionáveis desde o pré barroco, barroco, classicismo e romantismo, às músicas modernas e contemporâneas. E se desde a teorização da música na Grécia em seis mil antes de cristo que assim é, normal seria entendermos que nos apropriarmos de culturas mais antigas como as egípcia, chinesa, hindu ou judaica, de outros sinais, implicaria, mais do que produzir, atingir novos ideários de significação, embora sejam antigos; das ragas aos gregorianos cantares, das pentatónicas com cinco notas às hexatónicas com cinco e seis tons, das heptatónicas com sete sons  às costumeiras diatónicas, âncoras de quase toda a música no ocidente vivida nos seus modos maior e menor.

Em quatro séculos, a compreensão do mundo político-teológico foi apagada, mas nem assim nos coibimos de  sacar a parte que mais nos interessava com duas funções muito particulares: entreter e ajudar a pensar. Esse poder simboliza uma expropriação do direito à existência doutrem, ou a sua existência noutros contextos com outras realidades? É o humano a ser humano. Ou melhor, também poderia escrever que é o Ocidente a ser ocidente, cultivando o silêncio e vivendo da contrafacção.

Se seguimos uma linha de sentido e pensamos a partir de uma razão aplicada ao pensamento, não entrando nas brechas do irracional e do desconhecido, se não vivemos outros, estamos a negar as comunidades; não estamos a eliminar a mistura, mas a servir-nos delas para justificar a nossa civilidade. Parece-me tudo menos obscuro.

Ao contrário de um Além do Bem e do Mal nietzschiano, o racional tesoura, cose e reconstrói uma cisão entre a bondade e a maldade; esquecendo que a nossa visão do mundo não é a dos outros e vice-versa. Limitando ainda mais as nossas limitações, deixa cair no esquecimento que a melhor realização de nós pode ser um lixo, e voltamos, assim, a uma outra ideia que tem envelhecido bem, convém que ao lado de mais um eleito génio haja um caixote do lixo, ao lado de uma originalidade, ou dentro dela, estará sempre lixo. Luxo e lixo são inseparáveis na cultura do espectáculo.

Na história do pensamento nada é fixo ou fixável por muito tempo, e por isso simpatizo com a teoria dos opostos yin-yang que aprendi há vinte e cinco anos com um velho amigo nas artes marciais; o que é convulso, incoerente, paradoxal, é real. A verdade e a mentira são logros de uma exigência mundana característica do capitalismo. É com o capitalismo, com rostos e braços diferentes ao longo da vida, que as pessoas deixam de sentir, por algum motivo a psicopatia é um agir pouco sinestésico, puramente racional. Os crimes mais abjectos, como nos disse Foucault, foram cometidos à luz da racionalidade, alguns começaram pela rejeição do emocional e de um outro dotado de sensibilidade, de uma inteligência intuitiva. Até a música e o som foram vigorosos instrumentos de tortura nas ditaduras.

A desvalorização do erro é problemática. Só quando o erro é valorizado o humano se emancipa, é no lugar da dor que mora a nossa singularidade. Sem sofrimento não há vida, e sem vida não há arte. 'Sem música a vida seria um erro', escreveu Nietzche.

    Hoje dizemos que não há planeta B, mas obliteramos que não há Humano B. A este propósito gostava de parafrasear aqui a profecia das ruas, um picho, vulgo graffiti, num mural contíguo à sonora Almirante Reis que canta assim: ‘vocês pensam no fim do mundo, nós pensamos no fim do mês’.




[1] No El País de oito de Abril de dois mil e dezoito leio que 'Os primeiros a falar de rituais funerários realizados por alguma espécie diferente do Homo sapiens foram os irmãos Jean e Amédée Bouyssonie, dois padres católicos que em 1908 descobriram os restos de um neandertal de 50.000 anos na cova de La Chapelle-aux-Saints. Segundo os Bouyssonie, a posição fetal do corpo e as ferramentas que o acompanhavam na vala onde o encontraram indicavam um enterro intencional. Especulando, sugeriam que os autores daquele ritual tinham capacidade simbólica e acreditavam numa vida depois da morte. A condição sacerdotal dos irmãos e as dúvidas sobre suas técnicas de escavação fizeram com que outros cientistas de maior prestígio desdenhassem sua hipótese. Entretanto, um artigo publicado em 2013 na revista PNAS sugeria que, no mínimo, os parentes daquele velho neandertal o enterraram intencionalmente e cuidadosamente.'

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