Para ti, amigo nascido no mesmo dia (meu e do nosso Waits) quase todos os poetas e pintores, homens e mulheres, seriam intrigantes e intemporais e davas-nos exemplos; Irma Stern, Monica Sjoo, Katherine Lynn Sábio, Leonora Carrington, Rosa Rolanda, Sonia Boyce. Mas o escol contemporâneo não autorizava aos artistas de certas classes ou origens vingar por muito intrigantes que estes fossem, só postumamente. Razão tinha o geófago insaciável, tão desprezado entre as falidas elites de moderninhos literatos, que mastigava a terra como poucos, antes que ela o mastigasse. Para a fina-flor alardeada com jactância pelos periódicos falidos, cabível era amar os nossos mestres, admirar aqueles que nos inquietam, quando estes já não estavam, só deles as suas cinzas; como se às elites só o fim dos génios lhes despertasse sentimentos – é esta a sua genética, reconhecível na literatura e na vida, e não creio estar a ser injusta –, antes da ruína, só os autenticamente medíocres eram endeusados, aos génios calava-se o pio, será o mesmo que declarar que dava-se-lhes pouco palco e nenhuma importância. A menos que definhassem. E, na verdade, nada disto era novo, em mil novecentos e cinquenta e seis Camus exprimiu-o, corajosamente, em A Queda: [se até] os amigos despertavam as emoções depois de mortos.
O imenso comércio do nada XXVI Talvez nos pareça ainda que uma das mais potentes formas de contracultura a partir dos anos dois mil seja o uso da internet. Sítio de poucas cedências ou barreiras, goza de similitudes com as demandas utópicas e libertárias da geração de sessenta; a mesma aura dos espíritos contestatários e livres de divisões classistas, porém, e mais cedo do que eventualmente previra, como sucedera a outras derivas antes do virtual, também essa ideia foi capturada por uma cultura reformatória e conformista. O interesse crescente por discos e livros de um período da história ou de outras latitudes geográficas traduzirá certamente o apreço por assuntos como os da coacção da censura e resistência ao salazarismo ou outras ditaduras, as críticas a uma ortodoxia neo-hiper-realista, os imperativos arquivísticos e éticos da literatura e da música proibidas e, de modo um pouco mais subtil, o sujeito poético em comunhão com a mimesis quotidiana , a recriação imaginária a partir...
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