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Fragmentos

Para ti, amigo nascido no mesmo dia (meu e do nosso Waits) quase todos os poetas e pintores, homens e mulheres, seriam intrigantes e intemporais e davas-nos exemplos; Irma Stern, Monica Sjoo, Katherine Lynn Sábio, Leonora Carrington, Rosa Rolanda, Sonia Boyce. Mas o escol contemporâneo não autorizava aos artistas de certas classes ou origens vingar por muito intrigantes que estes fossem, só postumamente. Razão tinha o geófago insaciável, tão desprezado entre as falidas elites de moderninhos literatos, que mastigava a terra como poucos, antes que ela o mastigasse. Para a fina-flor alardeada com jactância pelos periódicos falidos, cabível era amar os nossos mestres, admirar aqueles que nos inquietam, quando estes já não estavam, só deles as suas cinzas; como se às elites só o fim dos génios lhes despertasse sentimentos – é esta a sua genética, reconhecível na literatura e na vida, e não creio estar a ser injusta –, antes da ruína, só os autenticamente medíocres eram endeusados, aos génios calava-se o pio, será o mesmo que declarar que dava-se-lhes pouco palco e nenhuma importância. A menos que definhassem.  E, na verdade, nada disto era novo, em mil novecentos e cinquenta e seis Camus exprimiu-o, corajosamente, em A Queda: [se até] os amigos despertavam as emoções depois de mortos.


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