Avançar para o conteúdo principal

Fragmentos

No primeiro ano vestiu-se sempre de preto, numa determinada manhã sem luz, tonitruante, foi ao mar da praia de Quiaios onde largou metade das cinzas, a outra metade enterrou no jardim da casa de Coimbra.
Passados dois anos da morte começou a vestir-se da cor das folhas secas, um amarelo torrado, tonalidade do fim do ciclo.
Repetiu ao longo de duas décadas que a acalmava falar com os defuntos e as plantas, murchos e revigoradas.
A única certeza era a de que os corpos amigos, como as folhas, desapareciam, encontravam um caminho fúlgido, e ficavam em paz, mas essa espécie de crença não terá sido nunca suficiente para fazer o luto do filho.
Não havia em Lisboa nazarenos, metodistas, nem católicos que lhe aliviassem o desgosto. Em três pesarosos anos procurou dar-se e aprender com todos, até que um dia se virou para mim e indagou retoricamente para que servia a fé cristã, além de entreter as dores e os pesares. Se, porventura, há séculos enobrecia entre fiéis o aprofundamento da dor, seu principal intento, e a mirava enternecida como quem opila frente ao Guernica de Picasso. – «A religião, como a arte, serve a quem dela se queira servir...», disse-nos no velório.



Comentários

Mensagens populares deste blogue

Fragmentos

O imenso comércio do nada XXVI Talvez nos pareça ainda que uma das mais potentes formas de contracultura a partir dos anos dois mil seja o uso da internet. Sítio de poucas cedências ou barreiras, goza de similitudes com as demandas utópicas e libertárias da geração de sessenta; a mesma aura dos espíritos contestatários e livres de divisões classistas, porém, e mais cedo do que eventualmente previra, como sucedera a outras derivas antes do virtual, também essa ideia foi capturada por uma cultura reformatória e conformista. O interesse crescente por discos e livros de um período da história ou de outras latitudes geográficas traduzirá certamente o apreço por assuntos como os da coacção da censura e resistência ao salazarismo ou outras ditaduras, as críticas a uma ortodoxia neo-hiper-realista, os imperativos arquivísticos e éticos da literatura e da música proibidas e, de modo um pouco mais subtil, o sujeito poético em comunhão com a mimesis quotidiana , a recriação imaginária a partir...

Fragmentos

 Meu discurso é o silêncio, meu canto o grito "A utopia existe sempre à custa da vida real" P arece não ser só uma tradução. Tendo como motivação poemas, dramaturgias, entrevistas de Müller, ensaia-se. Tira-se o rastilho tensivo às cordas de uma, de muitas, das guitarras deixada pelo escritor-dramaturgo e ...1, 2, 3... Ou, melhor,  eins zwei drei : Fernando entra com um  acorde suspenso , que  adiante se transformará em quinta justa e antes do previsto puxa do  dó aumentado, temos a tríade montada, dó, mi, sol; malhas entrecruzadas, renovadas sinestesias. E o que se segue é insinuante, retemperante, e muito sóbrio: o organizador desta edição no encalço de trechos capazes ainda de pegar fogo entre ouvintes, leitores, espectadores.   "[...] a Machstraße/Nem a sua academia das Ciências/Com a queda do despotismo asiático [...]".  Num tal excitamento de frequências a que é impossível ficar indiferente, extravasam-se barreiras datáveis; no sentido de ao apre...

Fragmentos

       O criador de estrelas religa-nos à cosmologia, ao porvir. Entre pessoas e estrelas, a cegueira e a lucidez num sonho prenhe de irregularidades, medos, bifurcações. Um voo veloz que nos edifica, destrói e reconstrói, nos leva a «flutuar» com o mensageiro «no fundo de um poço estagnado» onde as luzes nos vigiam antes de as procurarmos e podem assumir figurações de pedras preciosas; não obstante nos perseguirem, afugentarem e iluminarem nos intervalos da existência-persistência das memórias. A dada altura do chão e das tonalidades, nenhuma delas, provindas das estrelas, nos afectam; e, por isso, o mensageiro prossegue o voo, com as dúvidas, o desejo de reencontrar a comunidade que se esvai e recombina entre-os-tempos em ritmos diferentes, como numa cifra. Um pequeno grande intervalo musical, que separa duas notas essenciais, nós e as estrelas, para conseguir produzir uma relação entre elas. Movimento corajoso, receituário de um mundo inextinguível: um unive...