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Sessão de apresentação Sem Terra, Livraria Tigre de Papel


A pedido de amigos, boto aqui a transcrição da palração no dia do lançamento de (S)EM TERRA na Tigre de Papel. O que escrevi, e escrevo, não é confessional, ou interconfessional; sou uma zelosa apoiante do agnosticismo e da transfiguração, os "meus autores" estão quase todos mortos, mas quando penso no disparo que me leva à escrita vem-me sempre à memória o mundo inefável, prático, resiliente, punitivo, de fricção mental, generoso mas impenetrável, das minhas avós, traz-me os seus olhos, os dentes, as mãos, o rogar, as falas de ambas.
[depois dos agradecimentos vários, à Margarida que apresentou; ao Fernando que acolheu a sessão na Livraria, à presença de amigos e conhecidos, ao Jorge que editou]
Não vou falar sobre aquilo que escrevi, seria parvo, mas posso dizer algumas coisas (pausa) que são um disparo para o que escrevo.
Posso começar por dizer que as pessoas que me revelaram as coisas mais misteriosas ou ignoradas permaneceram invisíveis, uma delas sem saber ler nem escrever, estou a falar das minhas avós, Laura e Céu. Só ao fim de muitos anos consegui sentir que foi até invulgar aquilo que desocultaram tão cedo da minha frente. Ao mesmo tempo, é estranho, dei por mim esta madrugada enquanto escrevia umas notas para hoje a pensar acerca da razão pela qual escrevo e como tenho chegado a algumas ideias: percebo que quando estou bem-disposta é que aquilo que as minhas avós me revelaram me ocorre, e ao mesmo tempo que só quando estou abatida, descrente da vida, doente, consigo escrever a partir das coisas ocultas que acho que vêm dos autores que li e ouvi, mas acabo por perceber que foram elas que, há muitos anos, mas revelaram.
As minhas duas avós foram, uma delas é, ainda, porque vive entre nós, analfabetas eruditas. A que ainda vive entre nós quis aprender a ler aos cinquenta anos numa telescola de Coimbra.
Digo que eram ambas analfabetas eruditas por que encaravam os acontecimentos mais certos que temos, e os mais transcendentes da vida – a doença, a morte, o luto –, do modo mais elevado que algum dia conheci: falando com os animais, a minha avó Laura que foi queijeira e pastora, e as plantas a minha avó Céu, que cantava canções de Coimbra decorando as letras e os poemas por essa via e continua a regar o quintal mais bem tratado que eu conheço em Coimbra, onde crescem pequenas árvores de fruto e plantas, e a falar com elas.
Para a minha avó Céu a destrinça temporal não existe; não há passado, presente, futuro. Ela discorre sobre o dia em que o meu pai, seu filho mais velho, foi campeão de Hóquei em Patins em Angola na mesma frase em que lembra como ele morreu de um modo tão cruel e em profundo sofrimento há dois anos, é como se discorrer sem examinar o tempo a permitisse estar em paz. Eu acho que quem sabe descrever assim as cisões próprias do tempo que duramos e vemos os outros, que nos são tão próximos como a nossa pele, durarem aprecia a calmaria da solidão no meio do caos, das cidades cheias de gente zunindo descontroladamente, nos recantos do interior e do exterior da casa, onde animais e plantas vivem separadamente e são obrigados a conviver.
Tenho a impressão que foi o seu exemplo que me ajudou a entender que o pensamento penetra e aprofunda-se no meio das maiores crises e do turbilhão, foi sempre no meio disso que encontrei as dosagens certas para lidar com um internamento prolongado com uma anorexia nervosa em estado terminal até aos trinta anos, na Psiquiatria Mulheres em Coimbra, com a morte da minha mãe, e a morte do meu pai, e a morte do meu primeiro namorado. Apercebi-me que escrevo sempre de madrugada quando o acabrunhamento é maior e o tempo parece suspenso; é como se só nesses momentos difíceis, quase inconcebíveis, a mente conseguisse colher alguns frutos que, antes, através de muitos anos de dedicação ao trabalho não conseguiu obter. Esta pandemia, um dos muitos recolhos a que fui votada ao longo da vida, apesar de desta vez ser uma clausura colectiva, fez com que entendesse um pouco melhor estes ciclos e mudanças, as cisões, com que me aproximasse de um centro talvez, ou fundo, ou raiz. Nós somos preparados para cumprir os trabalhos que o mundo tem disponíveis para nós e habituamo-nos a isso, não estamos preparados para a cisão, para a ruptura. Quando ficamos sem o mundo onde cumprimos esses trabalhos, ou o metrónomo que anda connosco desde a infância deixa de funcionar, como me aconteceu, isso pode ser um sinal de que o medidor mais invisível de todas os medidores, o nosso fim, começa a contar.
Perceber que mais-que-humanos internalizam os mesmos costumes e hábitos, tal como a minha avó Laura quando falava com as ovelhas e as ordenhava ou a minha avó Céu com as plantas e as árvores de fruto do seu quintal, talvez seja um apelo pessoal para contrariar a excessiva industrialização e institucionalização do mundo, que traz consigo o afastamento do centro, do fundo, da raiz. Eu ainda estou a aprender com as minhas avós analfabetas eruditas a diluir as fronteiras entre o campo onde cresci e a cidade onde me fiz adulta, e a aceitar que os cheiros e os sons nesta teleologia de uma mulher do campo na cidade e da cidade que regressa ao campo, e a natureza de ambas, fecundam e se degradam como os nossos corpos.


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edição ORO/Caleidoscópio Novembro 2021,  capa de Lena Muniz.






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