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Fragmentos

Quantos autores andarão por aí de nariz e olhos e bocas no ar, sem olhar para o chão que pisamos, desconhecendo a argila onde se moldaram as formas mais indizíveis? Essa argila que, frágil quando tocada, os poderia descolar à farsa anarco-burguesa através da qual olham o universo lá de cima; conseguindo amiúde algo escandaloso: que até as mentes mais incautas enjoem as poses ensaiadas frente aos espelhos gastos. A escrita só deverá encontrar verdadeiramente o homem ou a mulher quando nem sequer se permitir ao fastio e ao desprezo posto nos salões, já Stendhal e Eça (ironicamente) intuíram, então, não frequentar de todo; já que apenas os bravos, corajosos, seriam amados pelos mestres. Por muito que a diletância se esforce em parecer mal comportada, o tempo não a levará consigo, quanto mais profunda for a entrega ao inexplicável, porque vinda das vísceras, ou do fundo do coração, a palavra escrita, e a imagem virtual da palavra num grau semelhante, será tão familiar à que ouvimos, como nos disse Wittgenstein, que mesmo o passado será futuro; é que a entrega faz objectivamente ver os outros que somos nós, não é o mesmo que nós e os outros. Estamos, portanto, sempre a tempo de não repetir aquilo que condenamos.


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