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Fragmentos

cílio esgar

Antes ficava-se com a pobreza estampada no sobrolho.
Hoje apaga-se do olhar do mundo sem esforço. 

Olhos de febre acertam os tons 
de contínuos sonhos na ponta da pinça. 

Aparando violentas lamúrias, 
últimas transparências num olhar 
sem rosto, nem solo, gota de lama. 

Havia nela permanência 
vestidinho sempre engomado 
submundo recatado pela idade 
movimentos de reverência. 

Labor negado às regras, 
ao sabor da frialdade genética, 
e o peso das botas de aço 
desunhava a esterilidade. 

Vincava o espaço entre a raiz da língua 
e traqueia pelo gargalo desfasado 
de uma garrafa vazia de pura seiva. 

Miserável era o exterior, 
paredes desonradas 
atafulhadas de tinta a rugir 
míngua, indigência, sorte. 

Se todas as goelas 
abrissem como uma aba velha, 
molhava nelas o bico. 

Abria-se ao recomeço. 
Qualquer cercania era alfobre 
inseparável de confiança e ganância.



Xana (Rádio Macau), leitura Saliva (edição Mariposa Azual , Julho 2022),
no AH! Artes e Humanidades, espaço multiusos Associação Mural Sonoro.






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