Avançar para o conteúdo principal

Saliva, edição Mariposa Azual, Julho 2022



o primeiro alimento sólido

Mastigava de boca fechada
imaginando redondos os ciclos,
um ornato protuberante circunscrito
à vista dum quarto para a modorra.

Trincava pão a esforço
para dos dentes não distanciar
ternura à corrente próspera
ou saudade do pão de beijo
migado sobrante pelo chão.

Pelas entranhas voltava à farinha mãe.
Estalando a língua com os maiores
dedos de uma mão podia ser livre.
Dizer não. E nunca responder.

Nunca responder afirmativamente
a desejos, crença, religião
talvez por receio, muito receio,
de neles nos afundarmos.

Batia azeda a massa perdida,
restaurada num ímpeto
homens, mulheres, filhas
filhos, irmãs, duro ar.

Cedia corpo, palato, orientação,
empurrando o fastio da boca
num impérvio caminho de ganchos
nefastos rente ao glorificado chão.

Que desfaçatez dizê-lo no êxodo
à indústria cereal de solo nosso
durante fermentação biológica,
aguada superlativa higiene nos afectos.

A verdade é que o meu corpo reagiu.
Malignamente. Sempre. A microorganismos
atirados para fornos em chamas da época.

Hipocondria espinhosa.
Qualquer fuligem revoltosa
devassada frincha ou rosto morto.
Infausta a vida que tinha.
(a que tenho)

Serena libertadora
a vida desejada.

O apetite era pernicioso.
Não saber a nada por nada querer saber
duma conhecedora alma
junto ao ruidoso fabrico
cozinhado até se desfazer da essência.

Não fosse alguém ver cilíndricas formas
suplentes no telhado ou no buraco do medo
férteis de um pai ou de uma mãe.





https://amariposa.net/saliva-soraia-simoes-de-andrade/


Comentários

Mensagens populares deste blogue

Fragmentos

 Meu discurso é o silêncio, meu canto o grito "A utopia existe sempre à custa da vida real" P arece não ser só uma tradução. Tendo como motivação poemas, dramaturgias, entrevistas de Müller, ensaia-se. Tira-se o rastilho tensivo às cordas de uma, de muitas, das guitarras deixada pelo escritor-dramaturgo e ...1, 2, 3... Ou, melhor,  eins zwei drei : Fernando entra com um  acorde suspenso , que  adiante se transformará em quinta justa e antes do previsto puxa do  dó aumentado, temos a tríade montada, dó, mi, sol; malhas entrecruzadas, renovadas sinestesias. E o que se segue é insinuante, retemperante, e muito sóbrio: o organizador desta edição no encalço de trechos capazes ainda de pegar fogo entre ouvintes, leitores, espectadores.   "[...] a Machstraße/Nem a sua academia das Ciências/Com a queda do despotismo asiático [...]".  Num tal excitamento de frequências a que é impossível ficar indiferente, extravasam-se barreiras datáveis; no sentido de ao apre...

Fragmentos

  O Imenso Comércio do Nada A europa e seus fantasmas de dominação Weidendammer Brücke, Berlin-Mitte, 2025 A pior mentira é a mentira da candura, da paz, do bom senso do parlamentar ocidental. Já mentimos tanto, já omitimos tantas coisas, que podemos começar a experimentar a honestidade a ver se ela nos cura.  É possível que dentro de poucos anos comecemos a renunciar ao pensamento dimanado da paixão e do desejo, da sinceridade connosco, a temer a angústia, a desenvolver cada vez mais conhecimentos que aproximam o mundo idealizado do que cremos ser o real, a moralizar os pederastas silenciosos numa manifestação ao fim-de-semana que silenciosos ficam como resposta ao chinfrim bélico do mundo. Afinal, a nossa principal característica é ter memória curta e aliviar episodicamente a boa consciência burguesa com acções para ficar tudo na mesma, menos a percepção que outros de nós terão. O drama histórico dos massacres e das limpezas étnicas – Bósnia e Kosovo, Sudão, Ruanda, Congo, S...

Fragmentos

  O Imenso Comércio do Nada XVII Público, privado, política, o esgoto a céu fechado Dizem-nos que nem todo o líder, ou aspirante, parlamentar é o nómada de quatro piscas encandeado pelo manual retrovisor da História oficiosa; nem toda a política partidária proveio do funambulismo, do mínimo esforço intelectual, da desagregação do real, das porfias difamatórias. Dizem-nos que nem todos os que são incapazes de aceitar uma estrondosa derrota e não se demitem vêm das bancadas universitárias, são onanistas, começaram o curso como-estar-sempre-deputado em juventudes partidárias onde o sistema é mais-e-menos teórico consoante os teoremas se repetem e as soluções surtem problemas de primeiro grau. Porém, também tenho visto que os que se condoem com um dispositivo estilístico brejeiro na hora de desenhar futuros que reafirmam pouco-nada-promissores enaltecem: as acnes rosáceas de um, os escândalos empresariais do outro, tudo, como ditam as normas, sob risinhos de Molière antianalógicos. De ...