Avançar para o conteúdo principal

Fragmentos

 ______

Quando a utopia é resgatada pelo poder, domesticada, se lhe bota um laçarote, mesmo que este seja ainda um poder flácido, e talvez nunca deixe de o ser embora aspire outros supedâneos, paga uma factura pesadíssima. 
As pessoas entram numa capela oclusiva, deixam de ter iniciativas por si, o poder passa a organizar-lhes tudo; mal a pessoa burile uma ideiazinha mais utópica, qualquer coisa que liberte, tem-no à perna, a fazer a folha, a passar à frente, a organizar tudo de modo mui relutante de forma a levar o seu séquito de fiéis indistinguíveis, o rebanho em suma, a crer num manifesto urdido e amanhado pela rama, o qual, na realidade, para os mais observadores se desfaz num sopro porque era já débil antes de se manifestar.
Abrir bem os olhos como quem abre a cabeça ao mundo desconhecido tornou-se imperativo, mais do que  sub-interpretações do desconhecido.
A finalidade do poder flácido nunca foi nem será derrotar estruturas, mas habitá-las, não necessariamente para reconstruir uma mais justa, antes para reiterar a confiança na que existe evidenciando-se. O futuro é um simulacro, a emancipação uma figura de retórica balofa; a sua condição natural, assim como daquela que a ofender, será flutuar de costas a apreciar a paisagem, enquanto os restantes morrem, ou já nem flutuam, escondem a cabeça dentro de água para esconder o que  pensam.
Não foi também Guy Debord quem nos disse que uma das principais contradições da burguesia na sua fase de liquidação era respeitar as criações artísticas opondo-se logo a seguir às mesmas para depois usufruir delas?
Deixo três questões, ruminai:
Não é sempre para o poder flácido a preocupação com o quotidianidade, os costumes, o comezinho onde mergulharam, que conta e não a melhor realização dos humanos? Dividir vedando o que é interdependente não é absolutizar? Para se considerar excelso, não se deveria fugir à profanação da publicação e exibição públicas?
A exterioridade não é sagrada... 
____




Comentários

Mensagens populares deste blogue

Fragmentos

 Meu discurso é o silêncio, meu canto o grito "A utopia existe sempre à custa da vida real" P arece não ser só uma tradução. Tendo como motivação poemas, dramaturgias, entrevistas de Müller, ensaia-se. Tira-se o rastilho tensivo às cordas de uma, de muitas, das guitarras deixada pelo escritor-dramaturgo e ...1, 2, 3... Ou, melhor,  eins zwei drei : Fernando entra com um  acorde suspenso , que  adiante se transformará em quinta justa e antes do previsto puxa do  dó aumentado, temos a tríade montada, dó, mi, sol; malhas entrecruzadas, renovadas sinestesias. E o que se segue é insinuante, retemperante, e muito sóbrio: o organizador desta edição no encalço de trechos capazes ainda de pegar fogo entre ouvintes, leitores, espectadores.   "[...] a Machstraße/Nem a sua academia das Ciências/Com a queda do despotismo asiático [...]".  Num tal excitamento de frequências a que é impossível ficar indiferente, extravasam-se barreiras datáveis; no sentido de ao apre...

Fragmentos

       O criador de estrelas religa-nos à cosmologia, ao porvir. Entre pessoas e estrelas, a cegueira e a lucidez num sonho prenhe de irregularidades, medos, bifurcações. Um voo veloz que nos edifica, destrói e reconstrói, nos leva a «flutuar» com o mensageiro «no fundo de um poço estagnado» onde as luzes nos vigiam antes de as procurarmos e podem assumir figurações de pedras preciosas; não obstante nos perseguirem, afugentarem e iluminarem nos intervalos da existência-persistência das memórias. A dada altura do chão e das tonalidades, nenhuma delas, provindas das estrelas, nos afectam; e, por isso, o mensageiro prossegue o voo, com as dúvidas, o desejo de reencontrar a comunidade que se esvai e recombina entre-os-tempos em ritmos diferentes, como numa cifra. Um pequeno grande intervalo musical, que separa duas notas essenciais, nós e as estrelas, para conseguir produzir uma relação entre elas. Movimento corajoso, receituário de um mundo inextinguível: um unive...

Fragmentos

  O Imenso Comércio do Nada A europa e seus fantasmas de dominação Weidendammer Brücke, Berlin-Mitte, 2025 A pior mentira é a mentira da candura, da paz, do bom senso do parlamentar ocidental. Já mentimos tanto, já omitimos tantas coisas, que podemos começar a experimentar a honestidade a ver se ela nos cura.  É possível que dentro de poucos anos comecemos a renunciar ao pensamento dimanado da paixão e do desejo, da sinceridade connosco, a temer a angústia, a desenvolver cada vez mais conhecimentos que aproximam o mundo idealizado do que cremos ser o real, a moralizar os pederastas silenciosos numa manifestação ao fim-de-semana que silenciosos ficam como resposta ao chinfrim bélico do mundo. Afinal, a nossa principal característica é ter memória curta e aliviar episodicamente a boa consciência burguesa com acções para ficar tudo na mesma, menos a percepção que outros de nós terão. O drama histórico dos massacres e das limpezas étnicas – Bósnia e Kosovo, Sudão, Ruanda, Congo, S...