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Fragmentos

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O mal altruísta

Necessitamos de um termo para descrever este fenómeno mortífero que pode transformar pessoas não psicopatas em assassinos a sangue-frio [...] (J.Sacks, 2021)

Já dizia Arendt, a propósito do julgamento do criminoso de guerra nazi Adolf Eichmann, que uma das banalidades do mal era suspender o raciocínio.
O mal, um fenómeno superficial, resistimos-lhe como nos deixarmos ir na aparência que ele tem das coisas mais convencionais. Neste sentido, quanto mais superficial a pessoa for mais susceptível está para lhe ceder, banalizando-o, como dizia Arendt. 
Há pessoas tidas como inteligentes pela organização de leituras, o recurso abundante a paráfrases, citações, mas nitidamente burras naquilo que daí retiraram para si, para as sociabilidades e até para a autonomia do seu pensamento.
A inteligência não se adquire por decreto ou número de graus académicos; um dos sinais inequívocos da falta de inteligência é a intolerância ao pensamento longe dos trâmites habituais, sendo isto assim em todas as capelas políticas, académicas, culturais, artísticas. 
Também a gente banal e receosa que a academia e as artes concentram tem alimentado, simbolicamente e literalmente, todos os sistemas, dos totalitários aos das democracias em queda livre de hoje, e o poder que estes sempre lhes atribuíram e atribuirão.
De resto, Arendt sempre se referiu, e bem no meu ponto de vista, ao sistema totalitário e não a indivíduos totalitários, olhando para o sistema cada pessoa é obrigada a transformar-se numa peça que o mantém em funcionamento tal como ele se assumiu, da mais pequena e aparentemente insignificante à maior das peças, todas elas se coordenam com o propósito de alimentar o sistema como uma máquina, mesmo que esta seja de terror, como foi o Holocausto, assunto a que a filósofa judia dedicou grande parte da sua vida.
Em suma, cordeiros obedientes ao sistema e às regras que os alimentam, sem os quais não existem.
O que é que existe de banal no mal a consumir grande parte do mundo?
Sou das que crê na inexistência de vanguardas. Já que vanguardas seriam, apenas, até não serem complacentes com um sistema atravessado de fendas ou desonestidade, seja ele qual for, elas foram e seriam, a existir, a antítese do sistema, a questão frequente, o desânimo, a cisão clara e exposta sem rodeios, mesmo que isso hoje lhes custasse a ausência de um lugar num qualquer escaparate digital, televisivo, grupo, e até viver, que não tem em si um valor inerente, ou, como disse Montaigne, tem a utilidade do uso que lhe dermos, o que é bem distinto da sua duração arrastada até ao limite e em profunda ataraxia. 
No recente livro de Jonathan Sacks, Em Nome de Deus (Como explicar a Violência Religiosa) o autor diz-nos que "muitos dos agressores, incluindo bombistas suicidas e jihadistas, vêm de lares europeus, tiveram formação universitária e, até à sua radicalização, eram vistos por amigos e vizinhos como pessoas amigáveis e simpáticas. Ao contrário dos nazis, que tinham um cuidado meticuloso em esconder os seus crimes do mundo, os terroristas actuais têm um cuidado semelhante em publicitá-los ao mundo por meio da apresentação de gravações e das últimas tecnologias das redes sociais".


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