Avançar para o conteúdo principal

Fragmentos

____
[volt
ANDO]
Qualquer empedrado, mesmo um caminho de cabras, pode ser considerado uma obra valiosa; uma jóia, um coral num mar límpido. Nesta fotografia há uma estrada calcetada que servira passagens seguras durante o crescimento quando um incêndio num barracão contíguo ao de uns vizinhos nos destruiu todas as utopias.
Desde esse infortúnio que nesta estrada foi instaurada a insegurança; e o medo de a percorrer faz-nos agora optar por caminhos alternativos.
Há alturas em que ainda fazemos um esforço para ver a outra velha estrada, como se ela fosse nova. Em síntese, como se fosse segura com o cheiro a alcatrão fresco, misturando contornos, salientando irregularidades.
Então, vemos o sítio onde aprendemos a andar: sozinhas primeiro, em grupo depois, ah e também a viajar de carro a horas tardias, ou à pendura, de motorizada, ao princípio dum novo dia sem que o anterior tivesse ainda terminado.
Havia uma mulher, que certos homens diziam ser linda porque diferente, de olhos  fundos e rasgados, cabelo pintado de preto violeta, pernas magras, exótica, com cerca de vinte anos à beira daquela estrada, parecia perdida, mas não estava. Era uma mulher de vinte anos muito velha, embora o corpo não o indicasse, tão velha que hoje, a quatro anos de fazer cinquenta, continua a parecer tão velha como naquela altura.
Todas as outras raparigas que encontrava nessa estrada a horas [que nos diziam] impróprias foram morrendo ou desaparecendo, talvez tenham ido também para outras pontas da cidade onde aquela estrada irrompera segura durante um certo tempo.
Aquela estrada só se tornou bonita por que dela brotou uma duradoura e silenciosa companhia. E é na companhia que a segurança começa e na ausência de companhia que ela acaba.
____


Comentários

Mensagens populares deste blogue

Fragmentos

O Imenso Comércio do Nada XX   É preciso esquecer para que tudo volte como novo Há momentos em que apetece deitar fora todos os fonogramas recentes com extensas durações de notas musicais para fazer o que uma só faria, ou, meramente, não deixar vir, eliminar antes que se entranhem, como apaguei há duas décadas o açúcar branco e a carne.  Por vezes parecem tentativas preocupadas apenas em manter os becos sem saída de outros, uma obstinação do tradicionalismo; uma tradição que se gozou de vanguardismo foi por não ter pretensões e não almejar ser canonizada. Uma tradição cuja face mais visível até podemos transferir para o presente sem nenhuma demanda extraordinária estilando-a por aí e cantando ao céu, ao sol, à chuva, ‘aqui estou eu fora do resto’. Camaradas, não estamos fora do resto se tudo hoje forem restos de restos de outros momentos e de outros gestos.  Quem passou por um conservatório fora da capital, nos anos oitenta e noventa do século passado, viu-o suspenso no tempo anterior

Fragmentos

          O Imenso Comércio do Nada VIII À procura da Ideologia democrática enquanto trauteia Cuidado Casimiro, cuidado Casimiro cuidado com as imitações...         A democracia tem cancro.   Se todos os pensamentos são fluxo é intolerável pôr-lhes uma cerca.      Num meio pós-cultural tão exíguo como o português, muitas das mulheres que exibem como pensam fazem-no sob o jugo da adaptabilidade. Mi steriosas, guardam todos os trunfos para quando acharem melhor  tirar o tapete às falsas contrapontorias de quem nunca largou o reino da mediocridade humana, nem famílias com heranças nefastas ou as uniões de factos sociaizinhas. Toda a mulher sabe que ser chulo social é uma grande valência, não interessa tanto a vocação, a aptidão,  a magia de ser sem cedências. Sabe que num ambiente assim, importante para um chulo é passar de fininho pela vida, evidenciar a sua existência fingindo que a viveu para lá das ruminações características das psicoses, não deixam de ser formas de vida  humana, tal

Fragmentos

O Imenso Comércio do Nada XIII:  moral intergeracional Ontem no café do meu bairro um vizinho, ex-militar, combatente de Abril, dizia-me no seu jeito encanitado: – O activismo de hoje crê ser o grande beneficiário do progresso. Acenei mais ou menos afirmativamente, mas com uma provocação: – O senhor estaqueou o andamento no Bloom d’ A Cultura Inculta ? Terei dito algo mais, circunstancial de certeza, não consigo sequer lembrar para poder reproduzir. Acho que o compreendo melhor hoje do que há um ano, altura em que me mudei para este bairro. Cada vez mais fala-se muito sobre pouco, é um falar à superfície, uma fala reservada sempre que se pode; garantindo alguma inviolabilidade a uma espécie de teleologia que se reconstrói ou metamorfoseia amiúde (sintomas de uma patogenia chamada capitalismo, diria um amigo). Sentem algum desdém pelos combatentes de Abril? Parece-me, antes, que tendemos a sobrevalorizar uma militância que uns tiveram certamente mas outros não, colhendo até hoje frutos