Assim como Goethe considera as cores uma das aventuras da luz, poderíamos considerar a embriaguez, como uma erupção triunfante da planta em nós, Ernst Jünger, 1977
Paul Cezanne - óleo sobre tela (1881) no russo The State Hermitage Museum; Casas Junto a Estrada
No dourado de vários metais líamos, escutávamos, marcações singulares.
Ângelo de Lima, João Pedro Grabato Dias, Laurie Anderson, Gil Scott-Heron, Günter Grass. Em dias distintos, por razões diferentes.
Eram laços e desenlaces incontáveis abrigados numa salinha de um rés-do-chão.
Ritmos, tons, detritos, máscaras sonoras, causticidades, cinismos; por isso não era lá muito boa ideia desconsiderar aquele que melhor exprimiu a ideia, Paul Valéry, que um dia teve a coragem de dizer que quando ouvia o início da Parsifal tinha vontade de partir a caneta por se sentir incapaz de fazer com as palavras o que os compositores faziam com os sons.
É possível que reitere a confiança num futuro onde apenas as artes, musicais, escritas, plásticas, detenham coisas que nenhum outro universo pode oferecer. Para isso há que abandonar qualquer defensor oficioso, agiota, trambiqueiro arregimentado, quaisquer cliques. Não existir como coisa verbal, ou perífrase, atreita a cliques.
A existência deste mundo artístico é uma degradação sistemática do pensamento e da existência, do Ser. Tudo se conjuga com o verbo Ter e não com o verbo Ser. É este o nosso contributo? Ter? Dinheiro [pouco], referências, mestres, um doutoramento, uma casa arrendada. Referências, mestres, relações efémeras. Referências, mestres: no future, como no punk. Títulos publicados, referências, mestres: produção, produção. Uma recorrente auto-poluição do nosso fundo, mais do que da consciência.
O meu amigo Nuno Afonso anda extasiado com a aprendizagem do sânscrito, — Não existe, nesta língua, o verbo Ter, diz.
Dezasseis anos depois lembro que durou seis meses o primeiro arrendamento. No chão da primeira casa arrendada fabricámos folhas coloridas numa única estação prolixa, o Outono, e o piso térreo cobriu-se com encartes de folhas unguladas que ajudaram a sulcar os nossos últimos livros de cabeceira. Vendemos todos os livros e discos adquiridos na última década.
Vista essa casa a partir do exterior, os amigos distantes tornavam-se próximos por trazerem alguma coragem em carência na mudança. Isto quando não nos lembravam, inadvertidamente, que tínhamos cartas por abrir, ou demais correspondências com a subida do preço da electricidade e do gás. Núcleos de afectos remanescentes e pagamentos adiados eram motivações insuficientes para regressar aos escritos engavetados e a outras tarefas, pairava e paira a elegia de um tempo deliberadamente confusionista.
Crescemos como as luas num piscar de anos. Ansiosas com a maré alta, o macaréu, a falta de bazófia, algumas perdas fracturantes. Assumindo-nos só perto da chegada ao meio século: — Sou culta, rameira para uns, sofisticada para outros, da alta e da baixa cultura, presenciei as melhores ordenhas e o definhar da gataria pelos excessos e o tédio, procuro rapaz ou rapariga de bem com o mundo e uma casa com dez anos de contrato, quero fincar raízes no edificado. Advertência: considero o cinismo a melhor faculdade humana deste tempo, e as piores o moralismo e o pudor.
Que nunca nos falhe ignição no mundo dos sentidos, nem sombras ou momentos lânguidos. Quando os corpos deixam de se emocionar com a convivência, o mundano, talvez estejam já a guardar o melhor de si para outro mundo, pelo menos os que acreditam; para os que não acreditam em nada o remédio é deixá-los ir todos os dias já que vão desaparecer; cerzir tédio e disfarçar dúvidas é para almas fracas que não sabem usar o tempo.
Estratégias de quem se quer furtar ao diktat apressado do mundo dito artístico sem se conseguir entender no meio de toadas da auto-exigência.
— Não se apoquentem, todos estamos subordinados ao desaparecimento.
Em frente ao espelho à espera que ele devolva imagens esquecidas dos dias em que fomos felizes com pouco, essa marca serôdia do crescimento nas nascidas desenraizadas poucos anos a seguir ao 25 de Abril.
Eis quando as inscrições singulares no dourado de metais herdados nos mostram os mesmos sulcos na pele e no pensamento; entre nós há alguém contente com a vida? Gorki diria, não; Laurie Anderson diria: desde que fales a minha linguagem; Gil Scott-Heron talvez declarasse uma república utopiana com mais atraso do que um ano – mais tempo que Thomas More demorou a endereçá-la a Pedro Giles –, numa garrafa largada num sítio de massas pedindo às massas que as revoluções não fossem televisionadas; João Pedro Grabato Dias diria no delá da galba, do outro lado do aquilo – antes revolucionário que reformista Mutimáti Frei? –, Günter Grass afirmaria que naquela época, insidiosa e barulhenta, passaríamos de charanga pela vida e o mais provável seria dormirmos numa trombeta. A Ângelo de Lima teria, com certeza, de parar o pensamento repentinamente; andar em busca da paz, do esquecimento, no meio deste espectáculo, a única fuga prestável.
Foi bom, de pouca duração, estive a encaixotar mais livros e discos, rumo a nova morada na capital dos micro-impérios.
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