Avançar para o conteúdo principal

Fragmentos

nódoas que perderam força

Estas nódoas repartidas 
perderam a força dos fios de lã.
Desmaiam no Outono condoídas 
pela aspereza, tecedeiras mecânicas, 
onde houve ovinos crespos, 
samarras dos quatro costados 
lavando, enxugando todo o litoral. 

Antes as manchas dirigiam-se ao âmago. 
Até ao centro de uma música preliminar 
onde um ocarinista flutuava sem arruinar 
ânsias de gravidade em pântanos barrentos. 

Mas nem todas as utopias são leves. 
Viradas para o que resta desse solo
crescem fungos no soalho onde continuamos 
a bater os pés, vedações à volta da cama e 
enrolados no burel coçado, sem poupar a cortes, 
sequer às lavagens da matéria em falta, acendemos 
conflitos da superfície ao fundo que nos atinge.
 
O prazer austero no refúgio cresceu 
como um borrão, labéu sem culpas 
pese o devaneio a aquecer ainda 
uma moldura insuportavelmente fria.

Estas palavras, límpidas, 
acesas para lá da convenção, 
compreendidas por via de um sentido 
último, muito além do artifício 
dos contrários, conduzem o fogo-fátuo 
oculto no duplo véu, bem-mal.

Ao tentar agarrar sonhos à luz das nódoas,
percebemos como nunca desprezam 
sensitivos mundos até ao fio secreto do espanto. 
Feiticeiros tecnológicos dotados de magnetismo, 
criadores do movimento de electrões 
nos circuitos de equipamentos hipnóticos. 

As nódoas alucinam além da densidade 
sónica, primeiras azenhas onde se gera, 
corre, a melodia, último vestígio humano. 
Sem vocalizações monocórdicas 
exploram o downtempo 
sensíveis ao espelho dum raio solar
 a despontar sobre uma nuvem firme.

in Saliva, edição Mariposa Azual, Julho 2022.







Comentários

  1. Muio brigad pela partilha. Incomum, fresco, muito bom ler o que escreves 😊

    ResponderEliminar

Enviar um comentário

nome

Mensagens populares deste blogue

Fragmentos

 Meu discurso é o silêncio, meu canto o grito "A utopia existe sempre à custa da vida real" P arece não ser só uma tradução. Tendo como motivação poemas, dramaturgias, entrevistas de Müller, ensaia-se. Tira-se o rastilho tensivo às cordas de uma, de muitas, das guitarras deixada pelo escritor-dramaturgo e ...1, 2, 3... Ou, melhor,  eins zwei drei : Fernando entra com um  acorde suspenso , que  adiante se transformará em quinta justa e antes do previsto puxa do  dó aumentado, temos a tríade montada, dó, mi, sol; malhas entrecruzadas, renovadas sinestesias. E o que se segue é insinuante, retemperante, e muito sóbrio: o organizador desta edição no encalço de trechos capazes ainda de pegar fogo entre ouvintes, leitores, espectadores.   "[...] a Machstraße/Nem a sua academia das Ciências/Com a queda do despotismo asiático [...]".  Num tal excitamento de frequências a que é impossível ficar indiferente, extravasam-se barreiras datáveis; no sentido de ao apre...

Fragmentos

  O Imenso Comércio do Nada A europa e seus fantasmas de dominação Weidendammer Brücke, Berlin-Mitte, 2025 A pior mentira é a mentira da candura, da paz, do bom senso do parlamentar ocidental. Já mentimos tanto, já omitimos tantas coisas, que podemos começar a experimentar a honestidade a ver se ela nos cura.  É possível que dentro de poucos anos comecemos a renunciar ao pensamento dimanado da paixão e do desejo, da sinceridade connosco, a temer a angústia, a desenvolver cada vez mais conhecimentos que aproximam o mundo idealizado do que cremos ser o real, a moralizar os pederastas silenciosos numa manifestação ao fim-de-semana que silenciosos ficam como resposta ao chinfrim bélico do mundo. Afinal, a nossa principal característica é ter memória curta e aliviar episodicamente a boa consciência burguesa com acções para ficar tudo na mesma, menos a percepção que outros de nós terão. O drama histórico dos massacres e das limpezas étnicas – Bósnia e Kosovo, Sudão, Ruanda, Congo, S...

Fragmentos

  O Imenso Comércio do Nada XVII Público, privado, política, o esgoto a céu fechado Dizem-nos que nem todo o líder, ou aspirante, parlamentar é o nómada de quatro piscas encandeado pelo manual retrovisor da História oficiosa; nem toda a política partidária proveio do funambulismo, do mínimo esforço intelectual, da desagregação do real, das porfias difamatórias. Dizem-nos que nem todos os que são incapazes de aceitar uma estrondosa derrota e não se demitem vêm das bancadas universitárias, são onanistas, começaram o curso como-estar-sempre-deputado em juventudes partidárias onde o sistema é mais-e-menos teórico consoante os teoremas se repetem e as soluções surtem problemas de primeiro grau. Porém, também tenho visto que os que se condoem com um dispositivo estilístico brejeiro na hora de desenhar futuros que reafirmam pouco-nada-promissores enaltecem: as acnes rosáceas de um, os escândalos empresariais do outro, tudo, como ditam as normas, sob risinhos de Molière antianalógicos. De ...