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Fragmentos

Há dois mil e quinhentos anos, Platão dizia que não podia haver conhecimento sem sabermos o que é o conhecimento. Até hoje ninguém sabe o que é, mas conhecer não será com certeza uma compilação de dados e uma arrumação por tipologias. Somos aquilo que conhecemos, é um problema ontológico: é-se tudo aquilo que se sabe. Em Cultura e Imperialismo, Edward Said afirmou que o sentido histórico tem tanto do intemporal quanto de temporal; é do intemporal e do temporal juntos que emerge um autor com vidas múltiplas, como múltiplas, também por isso, são as suas afinidades. Nenhum artista, de qualquer arte, tem pleno significado sozinho. Para Cioran, a indignação era mesmo a mola da inspiração (Cadernos AH!); Guy Debord dizia que em Portugal vigorava uma esquerda de esturjão, só lá estava para servir de resguardo da burguesia e evitar a revolução. A esquerda parlamentar seria assim o braço esquerdo do capital. Num dos diálogos de Sem Tecto, Entre Ruínas é afirmado que a liberdade serve o capitalismo, mas a falta dela mata o socialismo. Os diálogos aporéticos sobre práticas artísticas são infinitos. Pensemos, por exemplo, entre textos poéticos e música, é inglória a tentativa de separação dos universos musical e literário. Lembro-me que Amélia Muge escreveu estes versos de uma canção que não chegaria a editar nos anos oitenta, em jeito cáustico, a partir da percepção dessa noção de clivagem entre ambos os domínios:



Fazer canções ou poemas
só vejo uma distinção:
é que uns conseguem
outros,
está visto que não.

 


Letra e poesia são duas formas de uso das palavras, mas podem coexistir. Na Antiguidade poesia e canto eram sinónimos. A poesia era o laço de toda a humanização, uma espécie de canto primordial no sentido em que o ser pré-humano, como escreveu Ernst Fischer, foi-se formando enquanto sujeito pela articulação de sons verbais ligada ao exercício manual, procurando ajustar a natureza às suas necessidades, usando sons ritmados para coordenar o trabalho, atribuindo a certas palavras poder, encenando mitos constituídos por palavras: os primeiros poemas. O poema seria, então, seminal como a linguagem verbal ou, aquele primeiro poema que lemos poderia mesmo ser a última coisa a sair dos nossos lábios moribundos quando tudo o resto já desapareceu, como afirmou Joseph Brodsky. Esta declaração abre-nos para uma reflexão muito necessária em torno da memória, sobre aquilo que lembramos e aquilo que esquecemos. Algumas criações, especialmente em contexto decolonial, o que melhor conheço, partiram do diálogo entre o que se reservou na memória sobre raízes e uma nova linguagem. A poesia é o corpo mais estranho no mundo das artes da palavra; nos contextos históricos e económicos adversos, tendo como conduto a música, ela chegou a mais pessoas, muitos foram os poetas musicados; chegando onde certamente demorariam mais tempo a chegar.



A “poesia primitiva [...] não é exclusivamente a poesia dos povos pré-letrados, mas a poesia que está ligada ao canto, indiferenciada, anónima e colectiva [...]”, referiu Spina.


Se nos propusermos a um périplo por alguma da poesia e música editadas em Portugal em 1975 verificamos que em ambas coexistem gritos de opressão e de esperança, de desilusão e de sonhos. Não obstante, como nos diz Bally, os processos linguísticos podem não seguir a curva da cultura, isto é, uma língua não pode ser reduzida apenas à sociedade ou à cultura em que se inseriu, ou, de outro modo, ela pode não ser o espelho da civilização, sobretudo se estiver em ruptura com aquilo que ela representa.


Mais do que coisificar, a recuperação de símbolos e signos do passado nos textos, abre-se à indagação sobre assuntos, conjunturas, lugares que ocupam na canção literária. Ou, pelo menos, leva-nos a pensar sobre o facto de escutarmos mais as letras de algumas canções. A presença e o esquecimento de repertórios poder-se-á relacionar não apenas com a influência dos periódicos de projecção social, o poder e a atenção destes, a inclusão de alguns repertórios em currículos escolares; o uso de determinados registos da linguagem, os estereótipos criados socialmente, as hegemonias do discurso histórico nas artes – predominantemente masculinas na literatura da chamada canção de protesto –, e os imaginários sociais convocados nas práticas artísticas. Por estar na margem do campo de poder, isto é, por ser inexistente ou silenciada nesse campo, a mulher tem um modo de reconstruir pedaços da narração que lhe é próxima e de se posicionar, ou, se quisermos, há um cotejo entre pensar e fixar cenários sociais ou determinados por conjunturas históricas e sociais hostis. Mesmo quando não nos queremos deixar manietar pelas nossas referências e memórias afectivas, é muito difícil, senão impossível, nos separarmos delas. Podemos não descrever o que somos, mas dificilmente não escrevemos com aquilo que somos. Daí surgem as nossas simpatias e antipatias.


Escreveu Fernando Guerreiro que produzindo o seu fantasma a escrita terá sempre que ver, também, com uma antecipação da morte. Daí que para Montaigne, a premeditação da morte seja a premeditação da liberdade e haja mortes mais mortas, são as mais sãs. Cria-se de um campo já ceifado pela ruína, porque inevitavelmente temos de matar para que a imaginação surja, uma linguagem renovada, embora tenhamos consciência que o que sucede é a alucinação própria dos paradoxos da humanidade e em todos os seus actos criativos.


Partilho uma memória transfigurada:

1989, um inadvertido alarme de assalto soou do primeiro andar, dado pelos vizinhos Gracinda e Meireles; os nossos tios-avós terão vivido trinta e cinco anos num apartamento de quatro andares na Rua Antónia Pusich, até àquele dia nunca assistiram a rumorejar de tal natureza dos vizinhos do primeiro andar. Gracinda nem se recordava da cara do assaltante, mas idealizaram um retrato e cederam-no à polícia que o imaginou mais ou menos fiel: o assaltante era escuro, vestia calças de ganga largas, calçava umas sapatilhas da marca converse e usava um gorro vermelho com uma estrela, não deveria ter mais que vinte e cinco ou vinte e seis anos.

Má sorte a do meu irmão Adriano; a essa hora saía da escola de Alvalade onde ensinava há uma semana artes visuais a uma turma de crianças da classe média alta dos primeiro e segundo ciclos, trazia um gorro vermelho com uma estrela enfiado na cabeça e calçava umas sapatilhas da marca converse, era, essa, na realidade, indumentária muito comum entre cultores de arte urbana. Adriano já morava sozinho desde o ano anterior, nesse dia iria visitar a nossa tia-avó paterna que era como uma outra mãe (não segunda, outra) depois das aulas. Iria. Mudou-se para um apartamento de um só quarto na Falagueira-Venda Nova no início de mil novecentos e oitenta e oito. Quando saiu de casa o pai opôs-se. Procurou ao longo da nossa juventude convencer-nos que, para os outros, uma pessoa como ele na Antónia Pusich seria sempre excêntrico e que de um negro na Falagueira-Venda Nova diriam dificilmente pouco mais do que se tratar de um preto problemático, mesmo que Adriano tivesse nascido em Coimbra, tivesse àquela época um emprego estável, e concluído com resultados acima da média a sua formação em pintura na faculdade de Belas Artes de Lisboa. Durou algum tempo para que, com o outro irmão, conseguíssemos apossar do sentido pleno da afirmação paterna, do nosso pai herdámos alguma probidade empática, mas a tez ebúrnea dos de Andrade nunca nos situou exactamente no mesmo lugar, mesmo que nos esforçássemos.



Os pretos para os brancos são todos iguais!



Naquela tarde houve uma anafonese corrida à porta da Gracinda e do Meireles, tínhamos quinze anos. Na época foi difícil falar e sentir a condição de Adriano; ainda brincávamos nas ruas com a coloração do poder, mas o olhar de dentro de casa — empatia, raiva —, ficaram-nos na memória sanguínea. Ainda que isto, de chofre, não tivesse assim tanta nitidez quanto a que seria desejável, chegou para que em mim e no outro irmão despertasse o mesmo sentimento circular de impunidade na chegada à maioridade.






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