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Fragmentos


Dizia Jonathan Sacks que as formigas, as abelhas, a maioria dos insectos, exploram, alimentam-se, vivem em grupos e que no mundo selvagem, o indivíduo que é separado do grupo está morto, pois, com essa retaguarda, que é o contrário de vanguarda, ou seja, longe dessa outra realidade e próximo desta, a de estar mesmo nas margens do espaço ao qual pertence, como escreveu o desassossegado Bernardo Soares, é comido pelos reis da selva.

Em comparação com os mais-que-humanos, os humanos têm uma vantagem, são a mais rotunda das formas de existência na gestação e preservação de grupos. O nós é, de resto, sempre por definição um contra eles, os outros, apesar de as ditas diferenças, dada a complexidade da existência humana nas suas ambivalências, serem um logro. São mais as semelhanças que as diferenças.


Toda a escrita literária ou científica, artística; toda a escrita culturalista como é a dos jornais; ou o livro, ou o disco, tem especialmente um cariz performativo e é, valendo-me de uma expressão de Rosi Bradotti, um tanque de decantação. Partindo deste memorando, lembro que escrever, como musicar um escrito, terá menos que ver com comunicar ou intimar, e mais com traçar ou cartografar, se preferirem, mapas ainda por vir.
Praticamente tudo aquilo que desde a segunda metade do século vinte, até hoje, se afirmou como sendo uma contracultura é insignificante a esse nível, pois goza dos mesmos processos de instigação ao inebriamento geral, das mesmas ligações às indústrias de publicações de conteúdos várias (média), às mesmas dependências e angariação de poderes simbólicos anteriores. Se começarmos a tirar, como quem desbasta, uma a uma, as partes desse corpo de oraturas pseudo-confrontantes, vemos que tudo o que temos, na academia e no espaço público, é doxa como crítica, métodos da sociedade mercantil usando a farsa da independência, cagões contra cagões.


Se pararmos um pouco para repensar o circo do simbólico, percebemos que mais do que os meios, os recursos, e quem os detém; foi sempre de um meio que o underground falou. De um determinado meio. De um meio onde há pouca massa crítica. Quanto mais assimétrico for o meio, maior será o clima geral de aceitação do ruidoso, inconsequente. O que existe é uma cultura hiper-controlada e hiper-vigilante há mais de cinquenta anos, onde nada que apareça a pôr em causa esses métodos, os da censura soft pela ocupação de todos os espaços ditos alternativos (resta saber alternativos a quê), se problematiza. Porque se problematizar é reduzida a pó, que hoje, com as redes digitais, se traduz em bloqueio.

Como dizia Montaigne, o falar que aprecio é um falar simples e natural, tanto no papel como na boca [prosseguindo] é um falar livre de afectação, desordenado, descosido.
Todas as questões que estavam por resolver nos anos setenta, oitenta, noventa, do século vinte ficaram por resolver. Não era também o hiper-glosado Artaud que declarava como movimentos aqueles que fazemos no poste da fogueira da inquisição, porém, que disso não passava, já que a fogueira continuava a arder?

Hoje temos o cinismo, que começo já a considerar uma das melhores faculdades humanas deste tempo, o único contraponto plausível face ao restante, ou, então, temos a completa inconsciência. O que é a dita cultura onde todas as personagens afectas às artes gravitam além de uma personificação Matrix? Estares em instituições a achar que és contras elas, nos meios de comunicação de direita conservadora ou radical ou nas barracas das farturas (ler: supermercados culturais) que desrespeitam o fundo das coisas, confundem a lógica das coisas com a das palavras, valendo-me aqui de Platão, ou nas redes tomadas por oligarcas do poder onde todos querem um espacinho? Um espacinho no circo do simbólico como montra da sua mundividência, da sua persona, como produto excepcional, diferencia e contrapõe o quê?

Dizia Marx, já dissertámos demasiado sobre o mundo, o que importa é mudar o mundo.
O único situacionista que ainda sobrevive é Raoul Vaneigem, Guy Debord ao entrar no alcoolismo acabou com a internacional situacionista. Ficou tudo por resolver. Essas vanguardas não fizeram nada de especial, são apenas momentos que antecederam a agonia. Estamos todos a arder e vamos fazendo uns gestos.
Houve alguma epocologia que não fosse paradoxal? Não seria mais sagaz questionar o conflito de interpretações daqueles que se vêem, sem o ser, precursores de um pensamento livre e combativo?
Dos inconvenientes da História para a vida, não houve sempre uma espécie de obrigação de se passar por um niilismo heróico que aceitava o sofrimento em busca de novos fundamentos, de uma nova terra, mesmo sabendo que não há terra, mas um número grandioso de terras? E que essa multiplicidade escancarada foi, é, será, pela escassez, ou total perda, de fundamentos?
A redundância própria do devir e da criação do novo é sempre um simulacro. Por isso, era tão preciso para um filósofo como Nietzsche, mas não só, o esquecimento. Só ele poderia fomentar um olhar desprendido de vícios, um olhar de simplicidade extrema. Esta época, como todas as que quiseram novos caminhos e visões, é aquela em que, supostamente, aprenderíamos a esquecer para que tudo voltasse como novo; tendo em conta a necessidade de auscultar não só esse quebrantamento de fundamentos como uma atenção redobrada para destruir os falsos, ou seja, os que se apresentam como verdadeiros.
 

1984 - 2023
tudo na mesma, como a lesma





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