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Fragmentos


O Imenso Comércio do Nada III
                    
Não há razão alguma para que não se reaja emocionalmente a formas artísticas. Além dos acontecimentos sociais, da política, dos humanos, dos mais-que-humanos, ou para-lá-de-humanos, que razão haveria para que as obras não produzissem em nós abalos físicos, como por exemplo atracção e repulsa? 
Imaginem agora que vos vinha dizer que Heidegger não tinha destruído o humanismo e o existencialismo de Sartre, e que, seguindo a lógica de Nietzsche em Humano, Demasiado Humano, na sua carta sobre humanismo nem sequer tinha reforçado o anti-humanismo, nem tinha dito que Hitler era um produto do humanismo e do iluminismo; e, assim sendo, se tudo isto não fosse factual, se tudo isto não estivesse nos escritos de ambos, todas as veleidades que temos sobre o ser-humano eram agora uma raridade. 
Quem andasse mais alheado de uma leitura funda e entretido com categorizações de disciplinas e figurinhas de auto-ajuda que são os parentes pobres da filosofia, da história cultural, e da história da arte, diria agora que Heidegger era um mistagogo, já que toda a filosofia que se quer bastante lógica é irracional, e não precisávamos agora que nos viessem lembrar que Heidegger grafou a faculdade de pensar, diferente à época, que se o humano é um abismo, o humanismo não nos chegava.
Heidegger como bom nazi que era não morria de amores pelos americanos, odiava-os aliás, e, por isso, dividiu logo bem as águas, entre uma filosofia europeia e uma filosofia americana, enterrando as americanices em voga num poço hiante, talvez por isso ainda lá se caia com facilidade, o tapume é fraco e a tendência é cair no lodo. Certo é que ele destruiu a filosofia analítica americana no livro visto como fundamental, tão determinante que depois foi repescado pela escola francesa posterior ao existencialismo, quer por  Deleuze, como por Derrida, ou mesmo por Foucault. Toda esta escola foi uma continuação de Heidegger, terão todos entendido o erro infalível da filosofia americana: não ser pensamento filosófico, mas pensamento técnico que permitia que se deixassem de pensar as coisas em si e as passassem a arrumar por tipologias, grupos, castas, categorias. Ainda que, especialmente nos dois últimos, a marca de água para nós seja a questão política-ideológica, bem distante de Heidegger. 
Arrumar os objectos, pô-los na prateleira a, b, c, é mais confortável, é coisa de sociologia incipiente, que não alcança, nesta lógica de sentido, que se conheça a fundo esses objectos. Por ora, centremo-nos naquilo que os aproxima. 
As designadas ciências naturais, como todos os catecismos públicos e privados que se tentam aproximar de modo a serem mais facilmente aceites ou compreendidos, seja por via de gráficos seja por via de tecnicismos, são simplificações quantificativas das únicas qualidades que conhecem: a medida, o comprimento de uma onda, as frequências, as tonalidades. 
Dadas as limitações de cada corpo, trata-se apenas de uma visão sem realidade. Um cego vê de modo diferente de alguém que não está privado do sentido de visão, uma pessoa voluntariamente subnutrida tem um ímpeto mui distinto de um sobrealimentado, um surdo sente oraturas pela vibração. Assim, a medida das coisas, traduzirá apenas bolhas que nos permitem a sua instrumentalização e a sua exploração.
As filosofias analíticas achavam que iam conseguir evitar qualquer meditação sobre o logos. Mas, Heidegger intuiu que uma lógica que não pensa na sua origem está condenada à partida, fundamentada que estava numa crença. 
Levinson descreve-nos vários paradoxos na natureza das emoções às artes, para já, gostava de trazer aqui apenas dois: o paradoxo da ficção e o paradoxo da tragédia. No primeiro, indagou como poderíamos ter emoções sobre ficções, ou melhor, como poderíamos ter emoções a respeito de pessoas, posições, situações ficcionais, se não cremos na sua existência?; no segundo como poderíamos dar nexo ao interesse de apreciadores que têm de modo voluntário experiências de arte de emoções negativas...


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