O Imenso Comércio do Nada V
Paul Valéry dizia que, quando ouvia o começo da Parsifal, lhe apetecia partir a caneta, por não conseguir fazer, com as palavras, o que os compositores faziam com os sons.
Quando o intuito é descrever campos de visão enrolados ou redundantes, sinalizados pelas dúvidas, pela destruição, ou pelo afastamento de significados não corroborados, escrever pode-se ir revelando lentamente, ora como se fosse parapraxia, ora como um pequeno artifício que pode, ou não, diligenciar; pode ou não, controlar o simbólico. A escrita que manipula os símbolos manipula, em certa medida, a nossa visão do real.Tanto a beleza como o prazer, se apresentam comummente como algo de bom em absoluto, mas não são nem um bem nem um mal per se. Um déspota pode retirar prazer de obras ou gestos semelhantes aos de um corpo subjugado, mas para o primeiro o bem será distinto. Donde, o que é belo ou bom será o que eleva o primeiro pela subjugação do segundo. A ideia de belo, a olho nu, não parece ter uma bondade como uma maldade alocadas, ainda que essa percepção nos assole, dependerá do lugar de cada sujeito.
Disse-nos Levinson num dos seus ensaios sobre valor intrínseco e noção de uma vida, que avaliamos a bondade a partir de uma porção da vida, qualquer prazer efectivo é um género particular de prazer, tido por uma pessoa particular, em circunstâncias particulares. Mas, mesmo que a beleza seja um valor com propriedades reactivo-independentes, e dependentes, entendo eu, se existir uma carência na ligação dos seres sensíveis a vidas enriquecidas pela experiência, o valor da beleza pode ser quase nulo, ou mesmo nulo, e assim a pretensão de que esta seja um valor em si torna-se indefensável.Considero salutar quando reservamos uma disposição para a descrença, sobre o que nos é revelado como experiência valiosa.A emoção de imaginar que tocamos a Parsifal como Wagner, o seu criador, crendo que isso sucedeu, tem um valor, mas terá com certeza mais valor se essa experiência for fiel aos acontecimentos, e não apenas fruto do pensamento.
Isto para dizer que mesmo as vidas aparentemente semelhantes em qualidade, na apreciação e na fruição, vistas de dentro não terão o mesmo valor quando vistas de fora.
Numa perspectiva liberta de qualquer doxa, a arte não se cria por disputa de sinais de anuência ou desaprovação, apesar de os últimos resistirem frequentemente e serem nutrientes da hegemonia cultural, uma vez que a sociedade se alimenta das margens para os seus discursos de concórdia e heterogeneidade.
A palavra, como os sons na sua organização, ou seja a música propriamente dita, dadas as suas ubiquidades, tenderão para ligações e rupturas, sincronias e assincronias, com diferentes forças ideológicas. Além do espaço de representação e conceptualização da diferença, como propôs Bradotti, entendo a impureza e a rearticulação pelo viés de corpos subjugados como, mais do que uma alternativa, um, de vários, caminhos a considerar.
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