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Fragmentos

O Imenso Comércio do Nada VIII


Uma prova de como todas somos tolhidas pela ordem, aceitamos a subordinação e somos incitadas a manietar o nosso discurso escrito, ou, trazendo o aforismo Aurora de Nietzsche, uma prova de como continuamos de joelhos diante da força, quando ela foi superada por algo maior para passar a estar ao seu serviço como instrumento e meio, é obrigarmo-nos ao uso das aspas, que as academias, as sociabilidades, a dita-cultura, impõem, fazendo da libertação do nosso intelecto uma luta extenuante. Não permitindo a transparência dos enunciados (já que o nosso fundo, o segredo, a relação da comunicação mantendo o nosso mistério,  ou a 'opacidade' segundo a proposta de Jota Mombaça aludindo às poéticas da relação de Glissant, deverão ser preservadas), antes um conjunto de signos que privilegia o conceito e abafa a forma acústica. Ao deixarmos cair um dispositivo burguês como as aspas, logo tratamos de o substituir por outros, descurando ali a consanguinidade, ou os mesmos enlaces e as mesmas subjugações a uma ordem, a uma instituição, como é a língua, a família, uma certa linguagem. 


O mesmo se passa no discurso oral, quando emitimos uma opinião, não deixamos cair as aspas, na realidade as vírgulas dobradas continuam lá sem estar, e descartemos aqui as citações, onde elas permanecem para isolar e destacar algo já dito, é quando elas assumem um cariz ubíquo, estão por todo o lado, com medo de... sermos.

Quando estão lá apesar de as acharmos um dispositivo burguês ou uma grilheta do cânone, estão lá quando enchemos a boca de cuidados, que desocultam a mesma falta de libertação, e o medo das hierarquias, assim:
uma espécie de, 
digamos assim, 
é como se

ou, então, advérbios que agregamos à expressão intuindo que o que  dizemos é, desse modo, escutado, 
ou, tão-só, para não criar atrito a montante por o pretendido ser uma aproximação aos nossos interlocutores, 
como estes: 
justamente, 
precisamente, 
exactamente,
evidentemente

A natureza das coisas força-nos a sair do mundo como nele entrámos.
A questão é esta, trazendo aqui Montaigne, como passamos, como se da morte para a vida, sem impressão viva, sem afecto, sem paixão, sem dor, sem um olhar de dentro, ou sem nos pormos em causa?
As palavras não são nossas, as mesmas palavras já foram operantes e inoperativas dentro de  formulações semelhantes, e com os sons é a mesma coisa. Porque o que conta sempre é o sujeito que delas frui e as usa. E assim será.
As manchas por contacto humanizam, quase como as infecções por amor, humanizam como criam opacidades.





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