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Fragmentos


O Imenso Comércio do Nada XI

cultura e pós-cultura


[...] A nossa dor, o nosso prazer,
E esse riso de pedra da máscara sem fundo,
Que fez ruir as coisas deste mundo
E escapa a quem o queira conhecer
[...] 


Georg Trakl, Outono Transfigurado, tradução de João Barrento  (Assírio e Alvim, 1992)

 


Começo por clarificar o que entendo por cultura partindo de uma metáfora: imaginemos a cultura como um grande curso de água natural, agregador, heterogéneo e indiferenciado. Esse curso recebe no seu percurso trajectos de rios, ribeiros, lagos, poças. A jusante parte de uma tabulação dos valores da diversão, da diversidade, e do entretenimento mergulhados no curso como fuga ao tédio, ao hermetismo, às especificidades das manifestações culturais. Ao acompanhar este movimento aparentemente natural, reparamos como esse curso de água desagua, irremediavelmente, num espaço prenhe de líquidos convertidos, apesar de se tratarem de fluidos nem sempre claros, uns mais transparentes outros menos asseados, nenhum deles possui uma natureza só. Esses líquidos são trocados por valores culturais, ou mesmo um preço.
Neste ensaio (fragmentado para o blogue), cada vez que denominar uma cultura não estarei a convocar o pai da monografia, Franz Boas (na medida em que rejeito que por via de métodos indutivos como ver, ouvir, falar e escrever, se procure explicar leis da evolução da cultura e das sociedades dando relevo às relações de parentesco, à originalidade e singularidade, ao relativismo cultural e, ainda menos, aos costumes), sequer de uma cultura tal como propunha Edward B.Tylor (encarada como reflexo da vida social dos humanos adquirida de modo inconsciente, colectiva e independente da hereditariedade, entregue às realizações materiais, donde sociedades primitivas seriam excluídas da cultura, apesar de tudo, a ressalva: tinha como preocupação uma tentativa de reflexão acerca da humanidade e das humanidades extirpando-as de preceitos ou teomitias sendo descritiva e não normativa). Uso o termo cultura no sentido de prestar culto, quando este se cinge a quaisquer objectos artísticos ou manifestações culturais das mais variadas formas de arte, não descurando que estas são indissociáveis dos distintivos de classe agregados a cada um desses universos, indissociáveis dos espaços em que emergem ou das emoções estéticas que produzem.
Após a independência das outrora colónias portuguesas, sob a égide do altruísmo e da democratização, começou a desenhar-se uma facilitação na promoção de algumas formas artísticas através de práticas da cultura com uma forte tendência política de esquerda, mas ainda a demagogia dos discursos, a massificação, uma maneira de corresponder às expectativas do poder político e do poder simbólico, dos média e de cânones.
Não convém esquecer que numa altura de consolidação democrática, as fronteiras entre ‘alta’ e ‘baixa cultura’ se diluíram; a cultura não poderia permanecer património de uma elite, havia uma obrigação moral de a deixar ao alcance de todos, daí que as alfabetizações e os campos de experimentação, ou mesmo a noção peregrina de atribuição de mundo a mundos que antes não tinham, certamente, mundo, como a metáfora deixa transparecer, tenha sido útil à forja das clivagens próprias dos espaços de reclamação da diferença e das suas manifestações.
Quando se representa aquilo que José Ortega Y Gasset rotulou de ‘espírito do tempo’ mantêm-se pulsões que asseveram a função libertadora dos problemas e erros anteriores, produzindo em nós o mito da cura das feridas do colonialismo e das desigualdades, e, tal como a religião ou a cultura-tida-como-erudita quando indecifrável aos que não possuíssem aquilo que Terry Eagleton entendeu como ‘um gosto específico’, esse espírito de uma altura aplacaria as mesmas interrogações sobre a condição humana, as guerras, as ditaduras e o pós-guerra. A cultura, que alguns teóricos-criticistas designam de ‘popular’ e até ‘cultura mundo’ por ser, respectivamente, acessível a todas as classes sociais indiferentemente dos seus capitais culturais e ganhos simbólicos, e por resultar numa convergência de várias práticas artísticas e da cultura, eu prefiro chamar, simplesmente, cultura, pois entendo que a partir do momento da fixação e da reprodução dos objectos artísticos, fossem estes discos ou livros, tais divisões perderam certos sentidos. O que sobreviveu a estas conceptualizações da cultura será uma ‘cultura de massas’? Se não descurar que a partir dos anos oitenta e noventa do século vinte, com o pós-guerra, o alargamento dos meios de comunicação ou difusão, o desenvolvimento de novas tecnologias, houve um aceleramento nas exibição e expansão das artes e da performance social de criadores e agentes, afirmo que sim, a cultura de massas é o primeiro indício do afastamento do senciente das artes e humanidades trocadas que foram por ‘agentes da cultura’ e propaganda. As nuances do insensível, no entanto, não deixaram de ser cultura, mesmo quando multiplicaram novos desígnios para agarrar esta palavra a um significado conveniente, mas, que, em último recurso, apenas revelará o sistema de crenças dos enunciadores e interlocutores.
Julgo que o mundo global de hoje começou a desenhar-se na passagem da década de oitenta para a década de noventa, o vazio do espírito convive com o seu cultivo, a histrionice dos média com o isolamento dos seres sencientes, especialmente se falarmos de artistas. 
A realidade é turva. Não convém descurar o que nos disse Jonathan Sacks, ‘o século vinte deu-nos o máximo de escolha deixando-nos o mínimo de significados’. 
Há uma frequente sobreposição da imagem e do som na palavra. O que começou por beneficiar estruturas da cultura nas suas especificidades, uniformizou-a ao ponto de formas artísticas oriundas de universos com referências e objectivos desiguais, passarem por equivalentes ao gravitar em itinerários de entretenimento com discursividades comuns ou indiferenciadas (média: plataformas de informação on-line, podcasts, e todos os antigos modelos de publicação de conteúdos que se reconfiguraram e têm a sua presença on-line, como jornais, rádio, televisão). Assim, como nos disse Llosa, esta cultura que se pretende avançada, singular, democrática, plural, ou até disruptiva, com o desenvolvimento tecnológico intensificou o ‘conformismo através das suas piores manifestações: a complacência e a auto-satisfação’. Daí que as bolhas de fragmentação de hoje sejam ainda mais líquidas ou dissimuladas que as anteriores.
Face ao exposto, cabe-me explicar porque me relaciono melhor, a partir de certa altura, com a apresentação dessa ideia de cultura como sendo, antes, uma pós-cultura. Como qualquer conceito, este poderá ser equívoco, primeiro correndo o risco de nos remeter para uma ideia de que ‘antigamente é que era bom e havia cultura’, ou, então, para a ideia de estarmos ‘emancipados da cultura’, isto é, após a cultura.
Esclareço, então. Ao introduzir o conceito pós-cultura, aponta-se para a exacerbação da convergência num mesmo caldo, logo a indistinção pelo arregimentar de todas as derivações de cultura (cultura popular, cultura de massas, cultura erudita, cultura-mundo). Esta acepção demonstrará a proliferação de ‘crenças’, pois, entendo que, ao contrário da religião da qual só alguns humanos prescindiram como modo de se libertarem dos medos, se sentirem em segurança, praticarem uma ética ou uma transcendência, e donde só pequenas minorias se emancipam substituindo o vazio que a ausência de fé, crença, culto, mysterium, lhes traz por práticas da cultura no mundo global (onde qualquer artista ou arte se equivale apesar das suas diferenças, e se diferencia ou destaca pelo número de seguidores).
Um facto curioso da sociedade contemporânea, e no caso da portuguesa especialmente a partir dos anos oitenta, é a figura do teórico-criticista ter sido lentamente substituída pela do cantor ou cantora que enche recintos de festivais, o comentador televisivo, o humorista, ou, como agora, pessoas-já-personagens com uma forte presença nas redes sociais. Não que estas não possam ser transmissoras de um pensamento crítico fundamentado, mas acredito ainda que é na orla do espectáculo, normalmente, onde se encontram as participações mais interessantes, já que estas se eclipsaram do espaço mediático por opção, face às indecorosas vicissitudes da pós-cultura, ou ao descrédito já há muito previsto por autores como Orwell ou Steiner, apenas para dar dois exemplos. Antes a falta de apreço por alguns dos mais relevantes críticos da humanidade sucedia em virtude do pacto de silêncio com os efeitos produzidos pelos totalitarismos, isto é, creio que seja essa uma das razões para a desacreditação (Heidegger, Junger, Arendt, Schram, Vaneigem, outros), além da parca leitura do que nos deixaram, tão útil para repensarmos a dita-cultura. Depois, os, e as, intelectuais passaram a demitir-se do compromisso cívico por recusarem participar no jogo da ostentação das suas teses: o diálogo e o debate transformaram-se em impossibilidades. Não é, pois, de estranhar que filósofos essenciais para pensarmos poéticas da relação e  rizomas em mundos ditos-pós-coloniais como Fanon, Glissant ou Hooks tenham visto as suas teorias esmagadas por slogans destruidores da espessura das suas proposições.
Na era da pós-cultura, mais do que a inteligência do sensível, a emoção estética, privilegiam-se os engenhosos, o seu humor, a sua capacidade, tal como as máquinas, de adensar o volume da corrente de palavras. Espectadores não emancipados veneram o caudal de ventos ciclónicos com as mesmas amarras de outras épocas. Num clima assim, não será de admirar que os gestos mais despojados do senciente controlem os itinerários das artes e dos artistas, impondo-se pela omissão da sua indigência por trás de artimanhas vocabulares que oferecem aos séquitos de fiéis a ideia de que uma vanguarda daí emergiu. Desenganem-se, a cultura inculta sempre teve a arte como medida, meio, finalidade; nunca como princípio, necessidade, sequer um fundo.

 

nota: foi republicado pelo jornal on-line EsquerdaNet...

   



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