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Fragmentos

Conta-se, a propósito de Cássio Severo, que falava melhor quando não reflectia sobre o que ia dizer, que devia mais à sorte do que ao esforço, que tirava partido da emoção enquanto falava e que os seus adversários temiam irritá-lo por receio de a cólera lhe aumentar a eloquência. Conheço, por experiência, essa espécie de temperamento que não suporta uma meditação prévia viva e laboriosa [...] Porém, e além disso, a preocupação em ser bem-sucedido e essa aplicação do espírito, rígida e tensa na sua tarefa, consomem-no, quebram-no, bloqueiam-no, como a água que, de tanto se comprimir à custa da sua violência e abundância, não consegue sair por uma pequena abertura [...]




Monsieur Michel Eyquem de Montaigne, ao qual regresso – desvios frequentes ou reencontros que certas teses tendo como pano de fundo aquele parente pobre (música) também poderiam, poderão, possibilitar –, já que esta tradução está bem boa, este é o primeiro volume, editado pela E-Primatur, com uma intro de André Gide, a tradução é do Hugo Barros.
A propósito, gosto daquela ideia da contaminação transmitida por Rui Nunes, que subtrai a vigilância contraposta à margem, já partilhada há um ano, quando esteve connosco no AH!, espaço do colectivo Mural Sonoro, e recentemente, com o Fernando Ramalho, na Tigre de Papel. No entanto, não existe margem que não seja poder, a contra-cultura só é possível enquanto estiver fora do radar da capitalização.
Isto de vivermos demasiado nas palavras é típico da psicose dos nossos tempos, os psicóticos trocam o real pelo simbólico e imaginário, e não será isto também o mundo cibernético? O que muda o mundo são as consciências e não as palavras, sequer os corpos, mesmo oprimidos, que por si mesmos não pensam nada, são, em suma, carne para os canhões de sempre.
Daí eu achar que a melhor proposta contemporânea é a do Glissant, a sua poética relacional, e que a Jota Mombaça traduz da forma mais interessante que vi nos últimos tempos numa performance, a de opacidade. Todos temos o direito a cultivar o nosso desaparecimento. Mostrar até onde quisermos e rasurar depois. O culto da obviedade é das coisas mais darwinistas, abusivas, inquisitoriais, desta era. Sabes aquilo que eu quiser. Não há poética da relação sem segredo. Há abuso e mais opressão. Para muitas pessoas, a sombra espúria é a única maneira de permanecer no combate que conhecem desde que se conhecem. Sobretudo para quem não tiver quaisquer ambições políticas. É, em rigor, uma protecção.

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