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Fragmentos


O Imenso Comércio do Nada X

Quais as expectativas de ouvintes e leitores sobre artistas que aparecem por todo o lado a esmiuçar seus feitos e planos de trabalho?

Perante isto, a única coisa que importa poderá ser uma sociedade secreta com autores anónimos, a rebentar com a civilização do espectáculo? (para trazer aqui o título de um ensaio de Llosa)

Moças e moços da minha criação que estais a rir e alvitrar, no oculto como convém, sobre esta farsa enquanto em público velam a parvoíce para não serem votados ao abandono: deslindar só [se for por puro] gozo, pontualmente, e, quando muito, aquém de aquisições pessoais.

Este mundo já não é o da sociedade do espectáculo, proposta do Debord partindo dos achados e das intuições onde a vida é espectadora de si (leitura só possível devido ao marxismo e à multiplicação de mercadorias, isto é, por obra não das escolhas livres das pessoas mas do dinamismo do capitalismo), mas a civilização onde a dita-cultura agora é um mundo global e se apresenta como cultura-mundo (outra falácia): uma cultura que já nem cultura é, pelo menos tal como proposta anteriormente, será antes uma pós-cultura que largou o que antes reflectia o seu nome, a sua exclusividade, as suas especificidades, a sua erudição, convertendo-se em autêntica cultura de massas com o predomínio da imagem e do som sobre a palavra; um mundo de links e hiperlinks a avisar sobre quebrantamentos de todas as fronteiras e, também por isso, criando outras (os avisos e as profecias são quase sempre espelhos: minimamente reflexivos), não requerendo qualquer tipo de formação intelectual ou no plano do senciente.
Desde logo, a exteriorização permanente dos capitais do suposto sensível, nutrindo ideias da dita-cultura, sempre, claro, iluminadas embora nada de refrescante ou renovado se exponha a quem perambula ou aprofunda o sensível para lá dos objectos apresentados como arte, tenderá para o baluarte do declínio onde figuram tais formas artísticas, a confusão entre conhecimento e angariação de capitais culturais é propositada, entre inteligência e domínio de linguagem também.

Quanto mais saltos hegelianos ao dispor da revolução cibernética, mais obstáculos à criação de autores ou autoras independentes, capazes de julgar por si o que lhes agrada e o que admiram.
Mais que trazer à lembrança o livre-arbítrio, como modo de escamotear a evidente exibição permanente das elocutórias, é já uma realidade: torna os espectadores submissos, priva-os de lucidez, turva-lhes as reacções passando amiúde a modos condicionados e gregários.

Levando cibernautas a confundir a exibição dos ganhos simbólicos (hábitos de leitura, fruição de exposições, repertórios musicais, performances, outros) com saberes e inteligência, extrai-se o engodo que só nos revela como o darwinismo social tem, como grande cúmplice, o catavento de nome ciberespaço.

O retiro, mais que uma necessidade, é um modo de apreciar o filme grotesco da pós-cultura, conseguindo, por momentos, alinhar as sequências narrativas ao argumento tantas vezes repetido; ainda que com as variações linguísticas de cada altura, os cromos sejam os mesmos, a caderneta que encerra os paradoxos deste século terá, porventura, mais páginas nulas (tão inacabadas como comuns) que o anterior.

Não são só as mutações dos meios, e, já agora, dos fins, mais claras, é a evidência dos desejos, esses imutáveis e independentes da altura: monopolizar, enquanto se serve aos alienados da pós-cultura na bandeja da democratização, o vazio, apresentando por via de testemunhos diversos, como convém ao centro para manter a sua aura de concórdia, heterogeneidade e abertura, dentro do que, no fundo, deseja conservar: o lugar inquestionável bem ocupado, como tal a substituição e apresentação do paradoxo não poderá nunca ser posto na equação; os seus feitos serão feitiços no mundo alienado da pós-cultura.

Há dias, um amigo a viver em Londres durante uma conversa sobre o Brexit acabou a falar de um outro amigo, para dizer o seguinte: quando uma pessoa obesa vive no centro, explora o centro, vive de rendas das ditas-minorias trabalhadoras das artes, e, enquanto cultiva o seu jardim interior, permanece convocando os mesmos explorados, mantém-nos reféns da ladainha, vem falar de inflação, paternalismo, burguesia, fecho a porta na cara, como faço às testemunhas de Jeová, descarto logo esta publicidade ético-manhosa.

Creio que a mesma vontade feita movimento se poderia aplicar ao circo da pós-cultura.
Muitas camadas de roupa só anteciparão a nudez de algumas pessoas. Tentar parafrasear um anti-Dantismo depois disto é horrível, e, no entanto, tão adequado ao ciberespaço, mas é que quando fica a nu é... horrível nu, e cheira mal da boca.




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