alfabetos tumultuários
Lembrava Jünger em O Passo da Floresta que nas ditaduras a ilusão da liberdade está sempre garantida. Assim, para mantê-las seria fundamental mostrar que não se extinguira a liberdade para dizer não, continuar a apresentar provas de como se apoiaram no 'povo marginal', dir-se-ia noutra altura 'nas massas'; uma maioria isenta de um corpo distinguível e privado da própria voz, uma massa corpórea corroboradora de uns lorpas que, muito embora tenham ascendido culturalmente às mesmas sociedades mercantis pela subordinação, dando-nos a degustar a sobremesa de sementes de chia da abnegação, andavam muito empenhados a matraquear o seu delírio com detalhes impressivos das suas 'boas práticas' fora desse esquema societal entorpecedor.
Para manter as ditaduras fora ainda imprescindível mostrar como uma aceitação do seu programa representava não mais que a vontade livre de todas as pessoas, constituintes, claro, do tal 'povo marginal'.
Seria impossível para uma ditadura viver exclusivamente da adesão, se, concomitantemente, o ódio, o terror, não lhe desse a contracena.
Convenhamos que por pouco que nele pensemos, o passado, como escreveu Marguerite Yourcenar, é 'coisa infinitamente mais estável que o presente'. Se nos empenharmos, teremos uma panorâmica contrastiva para lá de razoável; um bom contributo a despeito de caminhos a calcorrear pelos corpos mais indigentes e mais inadaptados, desde os roteiros político-artísticos aos velhos-renovados ideários discursivos-culturalistas.
Afinal, de novo Yourcenar, ‘é a opinião dos outros que confere aos nossos actos uma espécie de realidade’. É o interesse de outro, a multiplicidade opinativa, que nos incita às mesmas voltas, aos mesmos retornos.
Se ninguém quiser ser contado na percentagem que não votou a favor do que as massas censuram ou reclamam hoje por via do vazio, como sejam a dopamina de polegares amotinados para cima e para baixo numa rede dita-social, uma condecoração vazia, um voto de confiança sob sinais de reprovação e anuência alternados nos espaços da cultura popular global (festivais, encontros, congressos, saraus, convenções, redes), o que nos restará será a desidentificação e o averbamento a uma água choca de um banho passado. Contudo, não adiantará muito tirar os santos do altar se o altar lá permanecer. Ou o menino Jesus das palhas estendido e deixar lá a água turva com o cheiro fétido do corpo definhando e os salpicos de lama.
Por que é que tudo é pessoal? Ou, como inquiriu o historiador Tony Judt, 'porque é que tudo tem de ser sobre mim?' A vida pós-cultural é política e a vida política é pós-cultura. Para quem a vida política é folclore e ‘género’, ‘raça’, ‘etnia’ ou o ‘eu’ são substitutos do nível de rendimento – ou da classe social – se o debate cultural contemporâneo diz estar na brecha é porque está; não saindo, no entanto, de uma grelha de leitura semelhante às ditaduras do século vinte, quando não dezanove, de um manual figurativo da dicotomia esquerda-direita mais ou menos expectável, não obstante o maior leque identitário com o qual se abana muito a ego trip, ainda que aos poucos, e na prática, tenha excluído o classismo da triga.
São tantas as paisagens sonoras presas ao passado, às experiências e às fantasias da memória, que, ao deixá-lo, algumas pessoas acharão porventura mais fácil deixar igualmente o que foram lá, nesse lugar, outras voltar a ouvi-lo, talvez numa combinação aproximada à de Ilya Kaminsky onde ‘tudo o que é musical em nós é memória’.
Este é um prisma problemista bem mais complexo do que as toadas com que o século vinte nos embalou. Não só porque se começaram a reivindicar linguagens antes votadas ao desdém, como uma inscrição em espaços de poder tradicionalistas onde a resistência à mudança apresenta, inevitavelmente, tensões, por mexerem com os lugares legitimados enquanto produtores do conhecimento, ou outras subjectividades.
Agora, para decompor o que existe ou pode existir repetiremos o quê e para quê se renovar é tentar descobrir o que renovaremos se renovássemos? Se pensar e transmitir o que pensamos é idêntico a todas as tarefas que começámos a fazer antes de as saber fazer, como ler, tocar um instrumento, ou escrever, o melhor não será admitirmos que na substituição de um paradigma histórico por outro, na abertura do século vinte ao vinte e um ainda estaremos a aprender a que soa o alfabeto?
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