Avançar para o conteúdo principal

Fragmentos

O Imenso Comércio do Nada XIV
alfabetos tumultuários




desenho: Elagabal Aurelius Keiser em Mistérios da Castração de Urano 
Douda Correria edição





Lembrava Jünger em O Passo da Floresta que nas ditaduras a ilusão da liberdade está sempre garantida. Assim, para mantê-las seria fundamental mostrar que não se extinguira a liberdade para dizer não, continuar a apresentar provas de como se apoiaram no 'povo marginal', dir-se-ia noutra altura 'nas massas'; uma maioria isenta de um corpo distinguível e privado da própria voz, uma massa corpórea corroboradora de uns lorpas que, muito embora tenham ascendido culturalmente às mesmas sociedades mercantis pela subordinação, dando-nos a degustar a sobremesa de sementes de chia da abnegação, andavam muito empenhados a matraquear o seu delírio com detalhes impressivos das suas 'boas práticas' fora desse esquema societal entorpecedor.

Para manter as ditaduras fora ainda imprescindível mostrar como uma aceitação do seu programa representava não mais que a vontade livre de todas as pessoas, constituintes, claro, do tal 'povo marginal'.

Seria impossível para uma ditadura viver exclusivamente da adesão, se, concomitantemente, o ódio, o terror, não lhe desse a contracena.

    Convenhamos que por pouco que nele pensemos, o passado, como escreveu Marguerite Yourcenar, é 'coisa infinitamente mais estável que o presente'. Se nos empenharmos, teremos uma panorâmica contrastiva para lá de razoável; um bom contributo a despeito de caminhos a calcorrear pelos corpos mais indigentes e mais inadaptados, desde  os roteiros político-artísticos aos velhos-renovados ideários discursivos-culturalistas.

Afinal, de novo Yourcenar, ‘é a opinião dos outros que confere aos nossos actos uma espécie de realidade’. É o interesse de outro, a multiplicidade opinativa, que nos incita às mesmas voltas, aos mesmos retornos.

Se ninguém quiser ser contado na percentagem que não votou a favor do que as massas censuram ou reclamam hoje por via do vazio, como sejam a dopamina de polegares amotinados para cima e para baixo numa rede dita-social, uma condecoração vazia, um voto de confiança sob sinais de reprovação e anuência alternados nos espaços da cultura popular global (festivais, encontros, congressos, saraus, convenções, redes), o que nos restará será a desidentificação e o averbamento a uma água choca de um banho passado. Contudo, não adiantará muito tirar os santos do altar se o altar lá permanecer. Ou o menino Jesus das palhas estendido e deixar lá a água turva com o cheiro fétido do corpo definhando e os salpicos de lama.

    Por que é que tudo é pessoal? Ou, como inquiriu o historiador Tony Judt, 'porque é que tudo tem de ser sobre mim?' A vida pós-cultural é política e a vida política é  pós-cultura. Para quem a vida política é folclore e ‘género’, ‘raça’, ‘etnia’ ou o ‘eu’ são substitutos do nível de rendimento – ou da classe social – se o debate cultural contemporâneo diz estar na brecha é porque está; não saindo, no entanto, de uma grelha de leitura semelhante às ditaduras do século vinte, quando não dezanove, de um manual figurativo da dicotomia esquerda-direita mais ou menos expectável, não obstante o maior leque identitário com o qual se abana muito a ego trip, ainda que aos poucos, e na prática, tenha excluído o classismo da triga.

    São tantas as paisagens sonoras presas ao passado, às experiências e às fantasias da memória, que, ao deixá-lo, algumas pessoas acharão porventura mais fácil deixar igualmente o que foram lá, nesse lugar, outras voltar a ouvi-lo, talvez numa combinação aproximada à de Ilya Kaminsky onde ‘tudo o que é musical em nós é memória’.

    Este é um  prisma problemista bem mais complexo do que as toadas com que o século vinte nos embalou. Não só porque se começaram a reivindicar linguagens antes votadas ao desdém, como uma inscrição em espaços de poder tradicionalistas onde a resistência à mudança apresenta, inevitavelmente, tensões, por mexerem com os lugares legitimados enquanto produtores do conhecimento, ou outras subjectividades.

Agora, para decompor o que existe ou pode existir repetiremos o quê e para quê se renovar é tentar descobrir o que renovaremos se renovássemos? Se pensar e transmitir o que pensamos é idêntico a todas as tarefas que começámos a fazer antes de as saber fazer, como ler, tocar um instrumento, ou escrever, o melhor não será admitirmos que na substituição de um paradigma histórico por outro, na abertura do século vinte ao vinte e um ainda estaremos a aprender  a que soa o alfabeto?


Elagabal Aurelius Keiser, pintura, fragmento As Rosas de Elagabal

    

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Fragmentos

O imenso comércio do nada XXVI Talvez nos pareça ainda que uma das mais potentes formas de contracultura a partir dos anos dois mil seja o uso da internet. Sítio de poucas cedências ou barreiras, goza de similitudes com as demandas utópicas e libertárias da geração de sessenta; a mesma aura dos espíritos contestatários e livres de divisões classistas, porém, e mais cedo do que eventualmente previra, como sucedera a outras derivas antes do virtual, também essa ideia foi capturada por uma cultura reformatória e conformista. O interesse crescente por discos e livros de um período da história ou de outras latitudes geográficas traduzirá certamente o apreço por assuntos como os da coacção da censura e resistência ao salazarismo ou outras ditaduras, as críticas a uma ortodoxia neo-hiper-realista, os imperativos arquivísticos e éticos da literatura e da música proibidas e, de modo um pouco mais subtil, o sujeito poético em comunhão com a mimesis quotidiana , a recriação imaginária a partir...

Fragmentos

 Meu discurso é o silêncio, meu canto o grito "A utopia existe sempre à custa da vida real" P arece não ser só uma tradução. Tendo como motivação poemas, dramaturgias, entrevistas de Müller, ensaia-se. Tira-se o rastilho tensivo às cordas de uma, de muitas, das guitarras deixada pelo escritor-dramaturgo e ...1, 2, 3... Ou, melhor,  eins zwei drei : Fernando entra com um  acorde suspenso , que  adiante se transformará em quinta justa e antes do previsto puxa do  dó aumentado, temos a tríade montada, dó, mi, sol; malhas entrecruzadas, renovadas sinestesias. E o que se segue é insinuante, retemperante, e muito sóbrio: o organizador desta edição no encalço de trechos capazes ainda de pegar fogo entre ouvintes, leitores, espectadores.   "[...] a Machstraße/Nem a sua academia das Ciências/Com a queda do despotismo asiático [...]".  Num tal excitamento de frequências a que é impossível ficar indiferente, extravasam-se barreiras datáveis; no sentido de ao apre...

Fragmentos

       O criador de estrelas religa-nos à cosmologia, ao porvir. Entre pessoas e estrelas, a cegueira e a lucidez num sonho prenhe de irregularidades, medos, bifurcações. Um voo veloz que nos edifica, destrói e reconstrói, nos leva a «flutuar» com o mensageiro «no fundo de um poço estagnado» onde as luzes nos vigiam antes de as procurarmos e podem assumir figurações de pedras preciosas; não obstante nos perseguirem, afugentarem e iluminarem nos intervalos da existência-persistência das memórias. A dada altura do chão e das tonalidades, nenhuma delas, provindas das estrelas, nos afectam; e, por isso, o mensageiro prossegue o voo, com as dúvidas, o desejo de reencontrar a comunidade que se esvai e recombina entre-os-tempos em ritmos diferentes, como numa cifra. Um pequeno grande intervalo musical, que separa duas notas essenciais, nós e as estrelas, para conseguir produzir uma relação entre elas. Movimento corajoso, receituário de um mundo inextinguível: um unive...