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Fragmentos

 O Imenso Comércio do Nada XVII

A ironia dos espelhos gastos



Nos nossos caminhos artísticos encontramos três tempos complementares: o tempo da ambiguidade, o tempo da metáfora das identidades, o tempo dos renovados discursos.

Na música as palavras criam fobias, representações reais-ficcionais, despertam fantasmas, espoletam teorias falseadas. No universo da canção literária de protesto mais mediático o extra-quotidiano, o extra-ordinário, o contrário das expectativas.

    A criação artística está subordinada a uma coacção estrutural do universo jornalístico, e no domínio jornalístico reina, tal como no artístico, a incerteza e a precariedade; muitos críticos não são pagos, muitos cronistas de opinião são procurados nas universidades a custo zero em troca de visibilidade e angariação de capital cultural ou poder simbólico; a figura do jornalista crítico experiente e sénior é substituída lentamente pela do jornalista precário e do investigador não pago.

A escassez de tempo e de interesse informativo contribuem ainda para uma leitura dos mundos sensível e artístico des-historicizada e des-historicizante, reinam imagens e estórias, na sua aparência, ridículas igualando-se, mesmo quando diferenciadas, umas às outras.

O sociólogo Pierre Bordieu em duas lições apresentadas no Collége de France mostrou-nos de forma muito clara os mecanismos de censura invisível da televisão pública desmontando ainda retóricas vulgares do jornalismo, escrito ou não, que turvam as águas para parecerem profundas; o jornalismo alterou-se radicalmente submetendo-se a uma lógica de audiências; o patético é exemplarmente demonstrado hoje nas redes ditas sociais de que tais universos fazem uso de modo a manterem os seus modelos de negócio, se o entendermos à luz dos sinais de anuência e rejeição, por via de emojis, e como as instituições procuram e validam quaisquer outros através de quantificações. 

Na música pop há editoras que procuram artistas pelo número de visualizações num canal como o Youtube. Sabendo ou descurando artifícios e  fórmulas de angariar públicos, que não passam apenas pela compra de anúncios e seguidores nas plataformas, mas por uma narrativa folclórica, pelo uso da imagem e pelo voyeurismo presos a lógicas de mercado, ou seja onde se fala daquilo que o suposto mercado quer e se age conforme ao mediatizado. 

    Há uns anos nos bastidores de um colóquio-performance financiado pela DGArtes, um músico, nas horas vagas escritor, dizia-me que o próximo projecto teria como pano de fundo a violência doméstica, porque 'estava a dar' e assim teria 'apoios do fomento cultural da SPA'. O meu descrédito pelas novas instituições-associações-cooperativas culturais  proto-voluntaristas clamadas independentes e contrapontísticas ao cenário mediático começou nesse dia. Será totalmente irrelevante apontar nomes quando as ideias e pretensões são próximas onde poucos os que sobrevivem da sua arte sem essa lógica aberrante de picar  ponto em tudo o que passou a ser mediatizado se salvam.

    As histórias sucedem-se sem uma perspectivação artística-histórica-social e com uma actualística-tradicionalista facilitada onde o encontro imprevisto do múltiplo se transformou numa muitíssimo ténue miragem. Há excepções, no seio de projectos autónomos, desapegados de entidades académicas e jornalísticas, não são, apesar de tudo, suficientes para mudar um contexto. E algumas até dele se valem para publicitarem as suas excepcionalidades. Se permanece a necessidade de retroalimentação em modelos convencionais com aparência alternativa a troco de compensações promocionais efémeras que engordam a precarização tanto do mundo artístico como da dinâmica culturalística dessas entidades, não se trata de alternativa mas comércio. É possível falar de uma arte destituída de valorações mercantis? Sou das que acredita que sim, que é possível, mesmo que difícil. Ela não existe fora disso, mas pode ser percepcionada além disso.

    Todas as aporias irrompem o curso normal da vida artística, o platonismo de uma ideia ou aspecto (eidos) terá sempre como estímulo o amor (erõs) por uma arte, esse amor é um ritmo e uma cadência na nossa procura do desconhecido, existe pela ausência, enquanto se persegue aquilo que não se tem, ou, no sentido lacaniano, enquanto o objecto desejado está ausente, enquanto não chegámos ao encontro do desejado, donde a partir do momento que saciamos essa perseguição, a materialização de uma escrita ou de uma música, e não a do reconhecimento da televisão, de uma página de jornal, evidenciados por mecanismos que a arte pode continuar a censurar se contrários aos direitos de quem neles cria-labora, de outro modo, e ao contrário do que nos diz Séneca (o desejo de ser aplaudido apenas por quem teria motivos para aplaudir) estamos a contribuir grandemente para anular as nossas posições para por elas não sermos baleados. 

Aquilo que nos perturba é aquilo que nos atrai. É assim para artistas, teóricos da arte e críticos. A maioria dos trabalhadores da cultura necessita que lhe seja sugerida uma concepção do mundo artístico, por  gestos e movimentos, o trabalhador da cultura que consegue furar e se impor à massa passando a ditar-lhe os gestos e os movimentos é visto pelos que conseguiu agregar como um benfeitor da cultura e pelos que desagregou como o malfeitor da humanidade. As imagens de um malfeitor e de um benfeitor são suficientemente teatreiras, já que em qualquer humano exposto à mundana querela de um contexto ainda não ultrapassado, algo novelesco, ambos coexistem sendo provável que em alturas de baixos recursos todos se assemelhem. 

Quem foge a isso é deglutido por reis-rainhas da selva mediática. Em todo o sobrevivente há um apaixonado pelos outros e por si, um pluralista e um pequeno ditador. Se é verdade que a História é helicoidal,  é também por ser marcada pela catarse e pela ironia, voltamos aos mesmos lugares de maneiras um pouco diferentes. 

    Acompanhem-me nesta deriva se vos aprouver: Harold Bloom apelida de Escola do Ressentimento os departamentos de Humanísticas onde a abordagem literária congrega rasura ou a reinterpretação de obras clássicas de forma a expor injustiças históricas e sociais. Bloom sobrecarrega a Escola do Ressentimento de visões do mundo como a lacaniana, a marxista, a feminista, até a semiótica. Para ele, o legado das artes das letras academizantes mostrava pouco mais que uma estagnação dos ajuizamentos elitistas e, por isso, não seriam capazes de representar as experiências de grupos minoritários. 

Constrói uma lógica não-lógica, se pensarmos que todo o gesto de leitura é por si elitista, que muitos desses departamentos são tutelados por figuras do mundo das artes e do jornalismo e que a maioria dos humanos não goza de tempo de ócio em sociedades capitalistas que implicam que só quem tem uma vida confortável pode existir culturalmente. Não há produtores de cinema sem verba, nem editoras de discos e livros, nem galerias sem coleccionadores. No entanto, dedicar uma parte da existência à experiência solitária da escrita e da leitura de repertórios complexos pode não ser uma escolha mas uma necessidade, para quem a vida é difícil e pouco confortável sacrifica-se em nome de um amor pela arte; mas não deixa de ser uma visão  cristã a da dedicação à arte e ao pensamento, da qual não me demito. Sem contrapartidas é apenas mais uma visão da contradição humana. O melhor é enfrentá-la.

Quando há um esvaziamento do sentido dos nossos gestos está-se a eliminar estrategicamente o mundo sensível que escapa às teorizações dos campos políticos-culturais nos média. O risco surge ao darmos alento às teorias que desejamos destruir. O miserabilismo das condições sociais e culturais mais tétricas não está ligado nem à biologia nem à psicologia das multidões de Gustave Le Bon, é intimamente inseparável do patriarcado e de ideias como a do estoico Epicteto que nos dizia ser possível no colonialismo 'encontrar escravos felizes'.

Bloom  deixa bem inscrito na mentalidade de muitos uma defesa apaixonada do cânone literário ocidental, mais tarde um filósofo de direita como John Gray no livro Two Faces of Liberalism exerce uma crítica à modernidade e à cultura tida como liberal-progressista, não podem ser afastados do pensamento crítico mas podem ser contestados. 

No ponto a que chegámos, as fugas da realidade podem ser um movimento neo-romântico e apaixonado pelas causas, mas, para rebater o que nos agoniza, e os resultados das ultimas eleições revelam-no, talvez o desacreditar pelo escárnio seja menos produtivo que um rebate que passe por reconhecer a fundo ecos passados em si e o teor de uma nova revolta sem rosto-corpo, a dos muitos votantes tímidos que não estão à parte da cultura.

E talvez o debate se deva fazer deixando cair  dispositivos burgueses como as aspas e os modificadores assim assim, quase, mais ou menos, tão caros aos antropólogos, filósofos e sociólogos.




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