Avançar para o conteúdo principal

Fragmentos

  O Imenso Comércio do Nada XIX

Não era a voz que falava mas a mudez



    Todos os repertórios de carga transgressora e provocadora têm as portas do tempo por vir franqueadas, nem vale a pena criar grandes tratados quanto a isto, basta olhar para os que são hoje tidos como clássicos e fragmentos inalienáveis das tradições escritas, históricas e filosóficas no ocidente. Não somos nós que impomos um destino às artes das letras ou musicais, são elas que se tornam o nosso destino. 

Nenhum provocador fogoso abanado no seu tempo terreno se transformou, até hoje, em fluxo contínuo, ao qual nos apeteça voltar para respirar melhor.

Qualquer artista que se interrogue sobre o que anda por aqui a fazer, nos seus momentos mais íntimos ou mais perturbadores de reflexão, não deverá ignorar isto. Com certeza que pode fingir que não o sentiu, toda a actualidade e toda a inactualidade estão feitas para escondermos o que somos, mas é impossível ignorá-lo por muito tempo.

Nada pode ser extraordinariamente novo quando temos milhares de anos e acções transformadores antes de nós. Até os autores que mais li, Nietzche e Yourcenar, recusaram a metafísica, no caso do primeiro opondo-se com grande entusiasmo a Platão e Kant. Não significa que os tenha superado, apenas que viu nas derivas mentais deles características que também rejeitava em si. Não deixou de se apresentar como um embaixador radical da crítica da razão e da sistematização atrofiantes do pensamento. Sistematizar o pensamento é sistematizar a vida e a consciência alheias, é desejar a homogeneidade em detrimento da heterogeneidade.

Todas que aspiramos a consequências dos nossos actos, das nossas exposições e posições públicas, elaboramos contendas em primeiro connosco, a seguir com posições arcaicas, mas nem por isso velhas, como a honestidade, a nossa verdade, a nossa vontade de poder.

Intertextualizamos quando temos  apreço por alguns e algumas que nos antecederam e nos abriram caminhos, estavam lá já mas algum dia abriram-nos a eles quando os achámos impossíveis percorrer por só nos aconselharem a  escondê-los de nós. Não é o mesmo que parafrasear ou papaguear  intenções demagógicas e puramente recreativas no imenso comércio do nada.

Todas as ânsias de superiorizar uma ideia de dominação estão presentes em algum momento nos artistas, em alguns a vida toda, não se emanciparam desse lugar, até por isso as temos de compreender melhor em nós, não é à toa que Nietzche usava a afinidade interior ou o poder existente em tudo no mundo desde Apolo e Dionysos a Wagner, como ditames.

Desmascarar outra acção ou um outro implica tirarmos todas as máscaras que a vida nos obrigou a pôr, só damos conta disso ao aproximarmo-nos do fim da linha. Todas as recordações guardadas se agigantam e deterioram e apodrecem diante de nós. Deparamo-nos com afloramentos e velhos aforismos nas nossas falíveis estruturas, com sequências superiores a cada frase e em cada gesto feliz ou infeliz, próprio ou impróprio. Com o corte do nosso fluxo e do nosso olhar, o desvio e a descontextualização, todos os princípios organizadores usam os mesmos tiques e vícios, a mesma inconsequência, as mesmas dicções terríveis ou não melódicas, a mesma inobservância e o mesmo diletantismo, o mesmo bavardage culturalista e asséptico. Dizemos ou escrevemos uma coisa, lêem-nos ou reescrevem-nos doutra. Galopar e abrir são verbos não coadunáveis com cortar. Não nos coibamos  em dialogar com quem e a quem devemos o que somos por tentarmos há muito ser; almas velhas mas não antiquadas. 

    As panorâmicas captam em toque e foge, como um clique de telemóvel e uma clique envelhecida, figurações textuais fora da norma ou alheias, mas não as revelam, é complicado digerir quando o que todas as pessoas procuram é o todo final  e não o todo partido e repartido no fim. Se os vossos recursos para fazer sentido são excluídos ou estiverem à parte do mundo por não agradarem ou serem agradáveis a esse mundo o que vos restará não é uma caneta nem uma câmara mas uma borracha e um arquivo para guardar debaixo da cama ou da almofada como alguns guardaram instrumentos repressivos da PIDE, não era a voz que falava mas a mudez. Isso será o mais comum das democracias em vertigem, não é o mais tolerável. 

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Fragmentos

  Perséfone, pintura Elagabal Aurelius Keiser FEMICÍDIO Soraia Simões de Andrade no prelo I Muitas mulheres escolheram o suicídio para não serem capturadas pela turba e convertidas à monogamia à força.  Onde se escondeu a pecaminosa que não a encontro há horas e quase me enlouquece? Será que a provocar me anda perpetrando o ego tal e qual as coptas que vivem no medo?  Os enamorados do século vinte e um não se consolam com fotografias das férias nas redes sociais. Perséfone Tinha em si a impermanência Das coisas do mundo Se a alma não fosse anciã  para onde correria o medo mergulhado nos teus olhos risonhos tão subterrâneos? Tocava tarola no belvedere Pedal eléctrico não era Gaveta aberta goela presa Virgem ficou pr'apoiar o meu no teu pé Sem pão não havia tesão nem  jazz aquecia nem vinho adormecia A ira ao bácoro capado, cómodo, agreste escrevia ou cantava: Vercoquin et les amis Nix Tingira na parede do Motel outro lado do mapa antes da fatídica noite, a heteronormatividade é a or

Fragmentos

          O Imenso Comércio do Nada VIII À procura da Ideologia democrática enquanto trauteia Cuidado Casimiro, cuidado Casimiro cuidado com as imitações...         A democracia tem cancro.   Se todos os pensamentos são fluxo é intolerável pôr-lhes uma cerca.      Num meio pós-cultural tão exíguo como o português, muitas das mulheres que exibem como pensam fazem-no sob o jugo da adaptabilidade. Mi steriosas, guardam todos os trunfos para quando acharem melhor  tirar o tapete às falsas contrapontorias de quem nunca largou o reino da mediocridade humana, nem famílias com heranças nefastas ou as uniões de factos sociaizinhas. Toda a mulher sabe que ser chulo social é uma grande valência, não interessa tanto a vocação, a aptidão,  a magia de ser sem cedências. Sabe que num ambiente assim, importante para um chulo é passar de fininho pela vida, evidenciar a sua existência fingindo que a viveu para lá das ruminações características das psicoses, não deixam de ser formas de vida  humana, tal

Fragmentos

O Imenso Comércio do Nada XIII:  moral intergeracional Ontem no café do meu bairro um vizinho, ex-militar, combatente de Abril, dizia-me no seu jeito encanitado: – O activismo de hoje crê ser o grande beneficiário do progresso. Acenei mais ou menos afirmativamente, mas com uma provocação: – O senhor estaqueou o andamento no Bloom d’ A Cultura Inculta ? Terei dito algo mais, circunstancial de certeza, não consigo sequer lembrar para poder reproduzir. Acho que o compreendo melhor hoje do que há um ano, altura em que me mudei para este bairro. Cada vez mais fala-se muito sobre pouco, é um falar à superfície, uma fala reservada sempre que se pode; garantindo alguma inviolabilidade a uma espécie de teleologia que se reconstrói ou metamorfoseia amiúde (sintomas de uma patogenia chamada capitalismo, diria um amigo). Sentem algum desdém pelos combatentes de Abril? Parece-me, antes, que tendemos a sobrevalorizar uma militância que uns tiveram certamente mas outros não, colhendo até hoje frutos