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Fragmentos

 

O Imenso Comércio do Nada XXII

A dádiva de uma arte musical revoltosa é um salto do escuro


[...] A dádiva da vida é um tiro no escuro, é o apelo da selva
É a grande roda, a grande viagem.
E se a enganamos, cuidado.
Vem logo aí a garra do macaco.
É melhor parar. Olha em volta. Escuta. [...]
Amélia Muge e Laurie Anderson (‘A Garra do Macaco’ no disco A Monte, tradução de João Lisboa)


[...] Há nas formas da palavra humana

uma desconhecida operação de rapina,

uma autofagia rapace em que o poeta,

preso ao objecto, se vê devorado por ele [...]
Antonin Artaud (Revolta Contra a Poesia no Caderno AH! #13, tradução de Fernando Ramalho)

Ao estar na periferia do campo de poder político; por ser quase inexistente, silenciada ou subtraída nele, a mulher musical tem uma forma de reconstruir pedaços da narração memorialística e de tomar posição. Um cotejo rememoriável. Repensando cenários culturais determinados por conjunturas históricas e políticas hostis ou dúbias, abre espaço a outras maneiras de ler e escutar a canção literária de protesto.

Vingam ainda nos média tendências retóricas excêntricas de compositoras surgidas em espaço colonial. A de que, numa altura destas, a cultura poderia substituir a crueldade da vida é uma delas. Os repertórios musicais de algumas intérpretes não são excepção às fantasias culturalistas de fuga ao ‘real quotidiano', para introduzir, e sem ironia, uma expressão simpática ao neo-realismo, anulando-se, assim, a intermitência em percursos de mais de duas décadas.

A nossa existência está fadada aos tormentos e desatinos. Há um mal contemplado na história da filosofia tentando responder com um naipe de soluções desde a mitologia grega e estoicismo, hedonismo e platonismo, ou outras correntes. 

A intelligentsia ocidental continua dominada por pessoas de uma esfera socialmente favorecida. Pode não o ser economicamente mas é-o, com certeza, socialmente. Raras, raríssimas, são as mulheres não fruidoras de acolhimento entre pessoas de uma esfera mediática, ou sob o aval da crítica musicológica-literária-culturalista, consideradas nas suas asserções artísticas ou sociais de um universo por elas profundamente conhecido. E o mesmo poderia afirmar relativamente a quaisquer outros corpos subjugados. O classismo transcende os símbolos e as minorias enquanto categorias; reacende preconceitos e ataques sumários a todas as pessoas  que, deliberadamente ou não, vão abandonando a retórica do poder institucionalizante. No entanto, gostaria de convocar uma outra orientação para algo tão polissémico, que de modo algum se poderia padronizar, como o poder. Agrada-me chamar-lhe de vontade de poder das artistas, retomando o debate do epítome volitivo nietzschiano. Sendo um conceito-chave numa dissertação que tenho em curso, propus repensá-lo. Não na linha de uma ética da vontade de Baruch Spinoza, onde muito provavelmente terá granjeado maior consideração, ou como aflorado por F.W.Hegel na sua fenomenologia do espírito. Se há autor onde um debate sobre o que é apropriado e o que é herdado da tradição filosófica antiga menos importa, esse autor é Nietzsche. Isto não significa uma menor importância, nem faria sentido reduzir a força de reverberação que a sua escrita tem até hoje, ou circunscrevê-la eliminando sentidos múltiplos estando ela na gesta de um  pensamento arrastado do vir-a-ser com grande êxito, já que extravasou os domínios da filosofia e da história das ideias. Penso que em qualquer relação entre uma crítica dos valores e da religião enquanto instituição canónica, como o fizeram estes autores, a vontade de poder nietzschiana aparece sempre na forma de impulso aceite da razão do diverso, da repetição no devir; é um princípio que cria e sublinha relações de forças diferentes e a qualidade em cada uma. Sem uma vontade de poder essa relação continuaria vaga, sendo difícil, senão impossível, para cada artista afirmar a sua linguagem, a sua presença, a sua performatividade na sua diversidade indómita.

O filósofo francês Gilles Deleuze escreveu que ‘Spinoza deu conta, antes de Nietzsche, que uma força era inseparável de um poder de ser afectado e de que este poder expressava o seu poder’. Diria, então, resumidamente, que em Spinoza germina um conatus independente da mecanicidade e da indolência (como fora apresentado em Descartes), pensado antropologicamente, aparecendo na terceira parte da sua Ética, apesar de postulado como princípio universal, uma força intrinsecamente reactiva mediante o exterior nos antípodas da substituição da identidade pela afirmação primitiva do devir e da diferença propostos por Nietzsche. A crítica dos valores, nascida da identidade racional, denunciará a efemeridade do humano e a sua criação nos tempos e nos lugares; como reacção motivada pela paixão e pelo desejo ao exterior e não como diferença nascida da vontade de poder. Porém, a vontade de poder nietzschiana  não pode ser confundida com o desejo de poder da vulgata tradicional. Não pode ser traduzida num desejo de dominação que apenas se extingue na morte como nos aparece, por exemplo, na filosofia política do célebre autor do Leviatã, Thomas Hobbes.

Para o autor de Zaratustra… só se quer possuir aquilo que não se domina e toma-se o poder por um objecto de desejo, por um valor, ou por um fim determinado. Algo que é fixado mais tarde sob o olhar psicanalítico de  Jacques Lacan no seu ‘objecto ausente’ ao declarar a ausência como ponto central na relação entre sujeito e objecto desejado. É a falta do objecto desejado que desperta o desejo no sujeito, o move, o motiva na procura de o satisfazer. Aspecto fulcral num universo como o da música, onde a imagem e os sons, a procura e a substituição permanentes quer de formas quer de [re]nova[da]s linguagens, embora ligadas a tradições distantes, têm grande fôlego e presença pública.

 Ao interpretar como as transformações culturais têm sido construídas no interior dos espaços escancarados ou vedados de acordo com interesses sociais ou políticos, lê-se implicitamente ou explicitamente uma não linearidade no discurso das artistas sobre os seus labores artísticos. Um discurso valorativo, positivo ou negativo, de uma obra ou de um sujeito sobre a obra não se desliga do poder nem se condói com uma cristalização da noção de poder. Sem lugar geográfico-social repertórios trazidos à cena, coetâneos dos que tenho vindo a investigar de uma compositora moçambicana de provecta idade, não existiriam; mas sem a vontade de poder da artista os seguintes não teriam chegado, por pequenos que fossem, aos públicos superando opiniões e processos de valoração intermediários; embora estes possam ter ajudado e prejudicado como dou nota no quarto capítulo da dita dissertação [ensaio]. O próprio veredicto de Nietzsche se vira contra a vontade na qualidade causal-substancial do ‘eu’. Não há vontade autónoma do ôntico [ser], não existe uma verdade, nem um sujeito no sentido absoluto, sem relação com a linguagem artística e o pensamento. Há o querer que é uma manifestação da vontade. O querer que é um fenómeno imaterial e incorpóreo. Assim, a atracção e a repulsa, a escolha, a rasura, o acolhimento e o abandono de teorias e formas de disco para disco, leio-os como um querer e uma vontade de poder da artista. A artista manifesta necessidades, uma necessidade é um instinto. Um instinto de fazer artístico pode surgir quando há indignação, tristeza, medo, disforia; mas de igual modo quando há euforia, alegria, excitação. Quando se exige  uma tomada de posição da consciência, a vontade dá sinal de si. Essa vontade é tudo o que está subordinado à acção dos sentidos ou o que impressiona a artista física e moralmente. Não se existe fora da moral, toda a anti-moral é uma moral que se rebela. Quando Nietzsche nos fala de uma faculdade volitiva fala-nos de uma comunicação baseada em descargas dinâmicas. Como um indicador dos níveis de intensidade sonora na execução de um trecho musical, que vão do pianíssimo ao fortíssimo, e de uma linguagem em trânsito. Assim, em situações de imposição e obediência a vontade das artistas está dependente de outras vontades tendendo inevitavelmente, com a exigência de submissão, para uma organização hierárquica, tal como numa orquestra. Ao pôr a nu as ilusões de uma autonomia da vontade, a artista faz acontecer pequenos momentos de processos complexos nas suas actuações. Entendo que o desafio da vontade de poder das artistas é um desafio a outros poderes. Numa tessitura articulada por uma performance musical figura um apelo à composição do saber pela via de uma inscrição da experiência da realidade. A percepção do poder tem já em si um impulso para o poder.     Nietzsche começa por usar o trágico para exprimir a sua experiência do real. Fá-lo numa reinterpretação dos gregos. Ou seja, partindo da oposição entre o apolíneo e o dionisíaco, faculdades estéticas-metafísicas em pólos distintos à volta dos deuses Apolo (deus da claridade, da aparência harmónica, da ilusão criadora de imagens noutros estados da consciência como durante o sonho visto e assumido como uma realidade), e Dioniso (deus do informe, do caos, expresso na música enquanto forma de delírio). A tragédia resultaria, assim, e como explica nos anos oitenta a investigadora Maria José Vaz Pinto, ‘da conciliação dos antagonismos: é a manifestação em formas apolíneas de bela aparência do fundo informe do sofrimento do mundo e da dilaceração dionisíaca, revela o abismo do uno revelado na música e o mundo sonhado das figuras’. Tal como na filosofia de Nietzsche, encontro ambas as dimensões em alguma da canção literária de protesto preconizada por mulheres. As duas representam instintos estéticos do humano, princípios metafísicos do mundo onde a arte é a sua força surpreendente, cósmica, e meio de acesso à realidade. As dimensões apolínea e dionisíaca lutam entre si não existindo uma sem a outra na discografia que abordo. O eterno retorno de todas as coisas firma, dada a ambivalência da compreensão tipológica da temporalidade, o lugar da experiência desse tempo e uma condição ética proveniente. Confere apenas o vivido e a plenitude de cada acto vivenciado. Não se desliga de uma moral, mesmo que afastada da moralidade cristã como o filósofo desejava. Convém lembrar que Nietzsche, vindo da filologia, ao contrário de Schopenhauer, a quem deve parte do seu interesse por filosofia e o desejo de filosofar, não vê a realidade de modo bipartido, de um lado o fenómeno e do outro a coisa em si. Considerava, antes, que o mundo vivido era a única parte da realidade e, como tal, não o deveríamos rejeitar, nem precisaríamos de um deus para ele ter sentido, mas da arte sim. ‘Sem a música, a vida seria um erro’, escreve no Crepúsculo dos ÍdolosNietzsche desdobra-se em ataques sucessivos à moral cristã e aos valores vigentes no mundo social que lhe é contemporâneo; moral e valores, de acordo com ele, advindos de civilizações e religiões já extintas, como a grega ou a judaica, em que muitos já não acreditavam (por isso extintas da convivialidade e do diálogo artístico-social-histórico-filosófico); havia, portanto, que criar novas bases de raciocínio onde se pudessem sentar outros valores. Como sabemos, o futuro das artes musicais, ou quaisquer outras, é um modo de continuísmo até nas cisões da arte como meio de criação e recriação da vida. 

    Ao longo da história da música, como de outras artes literárias, sonoras, visuais, e performativas, o futuro tem já a sua escolha reservada à vida que deseja manter viva; muitas existências se silenciam ou cancelam, servindo, no entanto, à vida que se quer manter inscrita na história. Ou, de outra forma, é preciso matar outras vidas, outras histórias, para que essa se mantenha como original e única. A representação de cada instante como repetição, a ideia do eterno retorno como um princípio fundamental da convicção nietzschiana, funciona como um revelador da nostalgia e não da sua condição de possibilidade. O seu imperativo é estético.


[...] esta existência, tal como tu a vives, e a tens vivido até aqui, terás que a viver de novo e ainda um número infinito de vezes; e nada aí existirá de novo, mas cada dor e cada prazer, cada pensamento e suspiro e tudo o que existe de indizivelmente pequeno e grande na tua vida terá que regressar ainda, e tudo na mesma ordem e sucessão [...], Friedrich Nietzsche em A Gaia Ciência
Nuno Nabais diz ‘é uma fenomenologia tipológica da temporalidade que funda as primeiras reflexões’ [do filósofo alemão] sobre a influência decisiva ‘da ideia de repetição infinita sobre aqueles a quem ela seria revelada’. No aforismo 341 é dramatizada uma repetição infinita na comunicação de um demónio [ou fantasma]  a entrar de rompante na nossa solidão pondo-nos diante uma outra, e bem medonha, imagem do tempo. A ideia de eterno retorno constitui-se numa dualidade de aspectos radicalmente opostos. Incentiva posições distintas sobre o passado, como diferentes são as memórias do passado. Para as artistas nas quais a memória de um passado se refrange habitualmente na consciência do remorso e da culpa, a impotência cresce e o desejo é apagar a ideia de um eterno retorno do passado como foi, seja  por via testemunhal seja de forma literária-sonora-visual. Isto porque a repetição de cada um dos actos que as artistas desejam esquecer apareceriam, então, como uma maldição ou um castigo. Para as artistas nas quais a memória de um  passado é uma experimentação nostálgica, que não parte de uma consciência da culpa, a ideia desse passado representa, como diz Nabais a partir da alusão a Nietzsche, um ‘pensamento divino’. 'A menos que já tenhais vivido um instante prodigioso’, como nos diz o mesmo aforismo, o quererás reviver.  Indaga Nabais, ‘A vida deve ser modelada como uma obra de arte, não em nome da possibilidade da sua infinita repetição, mas como forma de erradicar da consciência a experiência da culpa e, assim, superar as condições antropológicas da interpretação moral da existência. Mas, nesse caso, para quê a ideia de eterno retorno?’ . Uma das maneiras mais simples de matar a forma de uma recordação é escondê-la ou, a cada vez que a sua linguagem se manifestar, instituí-la. Refunda-la separando o seu modo de ser do seu modo de actuar. Se pensarmos exclusivamente nos testemunhos sobre o passado no presente, todas as suas feições memorialísticas são autonomias de formas instituídas divorciadas de uma força institucional para se poderem coisificar, pois o seu objectivo é persistir além da legitimação jornalística fugaz para imperar na vida futura. Se é verdade que há uma circularidade hermenêutica entre a fenomenologia da temporalidade e a condição de a ultrapassar cosmologicamente que leva Nietzsche a justaposições frequentes, e, portanto, a uma disposição aporética; também é verdade que esse círculo vicioso, dada a impotência da sua reformulação e a experimentação de outro tempo, tem permitido a ocultação do seu carácter ambíguo e uma ideia de futuro consumida por imaginários culturais contemporâneos prontos a acolher o ‘diverso’, conquanto esse ‘diverso’ preserve a face de um mundo semelhante. Ora, como nos dizem dois autores bastante nietzschianos, Édouard Glissant e Achille Mbembe, em Introdução a uma poética da diversidade e Crítica da Razão Negra respectivamente, o diverso tem necessidade da presença dos povos, não mais como objecto a sublimar, mas como projecto a pôr em relação (Glissant); tal como o ‘devir-negro’ (Mbembe) funda uma simetria com a face exploradora de outras vidas impelidas em benefício de uma única raça. A que  acrescento, uma classe, e um género.
Quando se está numa de superioridade, regalia, vantagem social, o mais comum é... fechar os olhos. É sempre mais fácil não ver para esquecer, ou deixar morrer para ser visto.


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