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Fragmentos






O Imenso Comércio do Nada XXV

Tratados sonoros do Vão Combate 



“Peguem nas vossas cadeiras e nos vossos copos de chá, sem esquecerem o rum, e cheguem-se aqui para junto do fogão de sala. É bom estar confortavelmente aquecido, quando se fala do frio”. 

Assim principia um dos contos de Bertold Brecht coligido em Kalendrgeschichgten, ao arrepio das interpretações do âmbito moral religioso parece gritar algo quase esquecido: na grande orquestra da vida precisamos uns dos outros como uma música depende de um ouvido humano para a escutar. 

Brecht embrulha de presente um ‘simples’ conto natalino para outros sem lar nessa noite mas o que talvez não previsse é que o pequeno texto pudesse continuar a criar um laço com  leitoras e ouvintes vida fora, aquelas cujas vidas levaram a que tivessem de reinventar a noção de família desembrulhando no último mês do ano reminiscências de aversão pelos Natais violentos. Ao desprender os cordéis que atam presentes não desejados, sem necessidade de invocar as razões para tal através de porta-vozes teóricos, avança-se de olhar misterioso e triunfante. Caminha-se para diante numa passada cada ano mais longa quando se conhece melhor que ninguém o segredo de um momento de felicidade concretizado que esteve calado.

 Por contrapor ao teatro do dramatismo épico e algo ataráxico o narrativo, mais propenso à escuta e à ruptura, a ser repetido e recriado criticamente, o texto brechtiano empreende uma acção enérgica contra limitações impostas pela lei advenham das geografia, ideologia, dos ambientes sociais e culturais, ou mesmo da orientação sexual.

Ler um texto de Brecht é vê-lo e escutá-lo não obstante a encenação. Fazê-lo com a nítida impressão de que partiu de uma unidade seminal dos intervalos musicais com a qual construímos escalas e acordes. Eventualmente, depois de fechado o livro, e o pano descer, não se segue qualquer acção. Não queremos com isto dizer que as suas boas leitoras sejam as que a seguir se inscrevem num partido de esquerda, mudam a direcção existencial, transformam radicalmente a pauta de leitura do mundo interior, ou, sob outro viés, as que se irritam e vão tomar o partido das memórias e da morte antes de tentar fazer nascer uma nova existência temporalizada. 

O que acreditamos é que é impossível continuar a ouvir o mesmo texto sem ver o quadro de luta com a parede em salitrada que lhe tenta ceder, os meios-tons diacrónicos e cromáticos que compõem um digno tratado do vão combate: o renascer ambíguo, como se nos desse uma segunda oportunidade de vir ao mundo politicamente no campo extra político das artes e contracultura antes de pensar na reforma. 

Como se vê, nesta matéria, estamos em perfeito desacordo com as teses da não funcionalidade da leitura ou da escuta musical. Vemos em tais declarações posições simplistas de superioridade relativamente à vida. Seria o mesmo que dizermos que viver não nos serve. Se o que mete confusão é o uso do substantivo feminino, troquemo-lo por um masculino, experimentem usar ‘benefício’ doravante. 

A vida sem texto e sem música era insuportável, convenhamos. Possivelmente a escrita não pode nada a partir do momento em que deixamos de ler ou escrever, mas se a grande tentação de um texto é a de ficar nos livros é por desejar ser lido; se a grande tentação de uma música é ficar num disco é porque almeja ser escutada. É o cariz de ultra-existência, inextinguível, de ambos que fechará e abrirá ao longo do tempo o círculo; o que nos leva a duas das poucas certezas que temos além do nascimento e da ruína. Por um lado, que o próprio fim da arte é a sua existência, por outro lado, que esta só existe quando se mistura, combate, convive com os outros e entre outros.


Os  pobres conhecem a necessidade da ajuda mútua


Quem o escreve é Marguerite Yourcenar em Alexis ou Le Traité du Vain Combat suivi de Le Coup de Grâce. O livro que alterou as nossas próprias formas instituídas por leis há mais de vinte anos. 

Depois daquela leitura todo o aparato de repressão e redenção seria violentamente questionado e delinearíamos cartografias por vir. As indecisões expostas tremulamente transmutaram-se nos pequenos dazibaos urrados nos concertos de garagem, as frases tantas vezes começadas e apagadas na tentativa de uma  formulação que não atraiçoasse o vivido mas também não o expusesse demasiado apagariam a nossa mudez e a surdez dos demais. A libertação passaria por tudo aquilo, ou aquela, que se rebelasse contra a padronização e a heteronormatividade. O fito. E como fito teria de ser levado seriamente a um porto mais que as coisas ditas sérias.

Foi preciso um momento de paragem, sete anos depois da primeira leitura, para que de Alexis tivéssemos novo sinal a partir de uma tradução portuguesa com alguns erros ortográficos. A dado momento Marguerite Yourcenar tornou-se a escritora de quem mais livros lemos. Mais? Todos. Fossem em francês ou traduzidos para o nosso idioma materno. 

Imaginámos Yourcenar mais velha, não deitada sobre um colchão mal articulado como nós na paragem, mas à deriva por Paris depois de o pai, um playboy com quem tinha uma relação de grande cumplicidade e lhe ensinara quase tudo, incluindo aos dez e doze anos a ler grego e latim, ter torrado a fortuna em copofonia e sexo livre com desconhecidos e a deixado sem um único suporte financeiro, que a levaria uns tempos a dormir num lar sem portas ou janelas: a rua. 

Resistindo num instante à especulação de um sonho onde autora, personagem, narrador, leitora, se reflectiam embora crescessem e se encontrassem em alturas distantes, o que nos interessou foi ver como na noite mal dormida (a que chamámos antes sonho, vamos, por isso, manter) estes corpos chegavam a medo, dos interstícios do ressentimento, ao centro, se sentavam frente a um molho de folhas tingido-o vagarosamente, por vaticinar, quiçá, que lidos desatentamente ficariam à mercê da cissura que os reproduzisse. Poderiam ser sempre escutados e decodificados por outros que tentariam codificar as coisas indizíveis de si. 

Há uma ideia no corpo deste texto da escritora belga recortada para um pedaço de cartolina que serve de encalço ao banco de piano surdo mantido, apesar de várias mudanças, na mesma posição quem sabe para não  desequilibrar a ideia. E a ideia é esta: a convicção de um ouvido humano que lá estaria para a escutar foi o que levou a que a homossexualidade fosse plenamente aceite por Alexis. É por abandonar o lugar estático e solitário da felicidade concretizada e da dor silenciosa para ingressar num outro, incerto, partilhado na escrita que a ponte entre o corpo e o pensamento é edificada. Na carta endereçada a Monique, com quem casara, a dor liberta-se do espaço intimamente combativo clareando o iminente, descobre outra maneira de lutar contra aquilo que a reprimiu. Do corpo recolhido para o corpo fugitivo, do ambíguo para o determinado, numa espécie de autognosia literária em que o interlocutor do narrador é, antes de mais, o próprio narrador, sensação e percepção dão sinal de si.

O movimento epistolar é mensageiro e destinatário, esse decisivo vocalizo gutural terá rompido o espaço entre os  outros adormecidos na arca do pó das expectativas familiares e societais, o instante em que Alexis desdobra a dor silenciosa no teatro valorativo que o destrói e se despede dela no singular (Perdoa-me, não por te deixar, mas por ter ficado tempo demais), compreende o elã que o leva da agressão inscrita em si à vontade de a enfrentar e desta à sublimação por meio da escrita para ser escutado. Há uma fuga do asilo psicológico quando, já esgotado pelas grilhetas a que se subjugara, adormece toda a organicidade que calou a voz e, sem precisar o seu alcance, berra. A carta abre a goela das formas simbólicas até aí repreendidas dando um sentido maior à sua existência.

Não se trata do que possivelmente estarão a pensar, do papel da escrita numa perspectiva salvífica, em benefício da confissão da orientação sexual, referimo-nos à experiência das orfandade e morte que a escrita e a escuta codificadas a partir da relação com o pai de Yourcenar operam. O  pai que, independemente da vadiagem, a ensinou a ler e lhe incentivou a aprendizagem de línguas, mas que também a levará a uma existência frugal no limiar da dignidade humana. “Já sofremos tanto com a mentira que não custa nada experimentar se a verdade cura”, escreve Alexis, não é uma reflexão da mais alta fineza postular, tão-só sintetiza uma fórmula da existência escrita sem rodeios ou tiques obscurantistas, no final o que fica da ideia é podermos não ter escrito ou tocado o que somos mas dificilmente não escrevemos com aquilo que fomos e temos.


Talvez devamos começar por declarar que se, como escreve Alexis na carta, “os pobres conhecem a necessidade da ajuda mútua” é por reconhecerem mais rapidamente a fronteira nem sempre clara para os ricos entre o esforço pessoal e a inapetência das unidades formadas em relação a interesses convenientes. Aliás, é possível que os pobres de hoje conheçam essa necessidade e não a pratiquem.

Se o leitor se desviar agora um pouco do texto e for até às ruas dos bairros antigos da cidade de Lisboa, ou se se afastar do centro e  vaguear pelas zonas limítrofes da área metropolitana, o tratado ganhará maiores contornos sinestésicos. Sobre os telhados de uma parte da cidade fantasma há janelas cegas a contrastar com novas gestões hoteleiras mescladas com os ritos previamente estudados de atendimento ao visitante; nas caminhadas nocturnas vemos mais pobres a perambular ensimesmados, de tronco inclinado entre a agitação dos eléctricos e as filas de trotinetes estridentes. Depois de todo o comércio fechar, descem exasperadas até à encosta surda do anonimato. 

Há sempre uma massa de gente perturbadoramente indistinguível. Mas, dificilmente esquecemos o trava-línguas daquela mulher de cerca de cinquenta anos que diariamente corre atrás das moedas como das pombas e atravessa a mesma rua escura para se dar conta que não é desejada. Desce ao inferno da experimentação sobre si repetidamente, é o seu manifesto, o seu texto.

A experimentação sobre nós aqui convocada está distante da ideia antiga e medieval do mundo, trazemo-la à colação através de um diálogo de Peter Sloterdijk com Carlos Oliveira, quando o fenomenólogo alude à pessoa que atribui a si o direito de experimentar sem quaisquer limites a sua vida.  Esta pessoa já não afirma que o mundo é um cosmos, ou tudo o que deus criou, ou um modelo ordenador; pelo contrário, para ela o mundo é aquilo que podemos dizer. O teste aos nossos limites dá-nos a liberdade de experimentar a autodestruição, o extermínio, como prosseguir campo afora despojando-nos alegremente do que há de mais íntimo e difícil. Esteja ou não lá já um ouvido à escuta.


__________
Bertold Brecht. 2001. Kalendrgeschichgten. Bibliothek Suhrkamp.
Marguerite Yourcenar. 1971. Alexis ou Le Traité du Vain Combat suivi de Le Coup de Grâce. France: Gallimard.
Peter Sloterdijk. 1999. Ensaio Sobre a Intoxicação Voluntária Um diálogo com Carlos Oliveira. Tradução de Cristina Peres. Lisboa: Fenda.






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