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Fragmentos

 (((Alla breve))






    Que uma amizade colorida e sonante fosse inocente era, por conseguinte, um paradoxo; mas, representar  a ingenuidade num sentimento imaginado, era a amizade possível e arrebatadora, apesar de  rara.
Quando ouvíamos dizer que a tua amiga era a emoção, entendíamos imediatamente que estava alienada à intelectualidade; concluindo, de seguida, que na maioridade somente nos devêssemos importar com as analogias. Aquela mulher nascera livre e por toda a parte vivera acorrentada.
Recordávamos certas festas em que nos viram gregas "por serem no início de cada estação"; apesar de a formulação se aparentar ilógica arrumámos uma lógica para ela: só o convívio e a bebedeira tinham o condão de alterar a sua percepção da nossa inocência. Eram festas pouco exuberantes embora explorassem  pequenos amplificadores made in Portugal que se revezavam cumprindo as funções asseguradas por tubos e tubinhos de aparelhos electrónicos made in Germany. Aparelhos que sugavam uma porção ínfima de corrente em relação àquela que era necessária para nos mantermos juntos e suficientemente transpirados. Por tudo isto, e outras coisas inomináveis, optara por usar uma forma substantiva entre nós: um eco. A figura de um som repetido, um som reenviado por um corpo duro antevendo a relação entre circunstâncias vividas por nós, como umas reflectiam as outras num corpo musical que mudava o seu lugar e a sua condição. Tudo concentrado, ao contrário do que se suporia dada a dispersão das nossas experiências. Para explorar movimentos de ancas semicondutores era preciso extrair cristais absurdamente puros de nós, refinar ao ponto de não deixar mais que um átomo de impurezas por dez mil de silício, imaginar a amizade não enquanto sentimento mas como uma ciência em marcha. Mas, isto era o mesmo que procurar os velhos detectores de silício nos pequenos mercados de rádios, telefonias, gira-discos, em segunda mão e trabalhar muito para parecerem acabados de estrear e de nos soar. O sistema auditivo nunca teve o monopólio da audição. 
Quando ouvíamos um insulto, quando ouvíamos uma canção, era o corpo inteiro que escutava, que os recebia num sistema cerebral e auditivo  prontos a recompor entre ruídos, silêncios, pausas, que a memória e a concentração escolheram. Àquele choro contínuo do bebé do vizinho de cima associamos agora um acontecimento físico e psicologicamente violento, à cicatriz queixosa um período da nossa história. Quando ontem ouvimos a sirene  da ambulância fomos invadidas por uma sensação de atordoamento, era com ela, afinal, que intuíramos há muitas vidas tratar-se de um acidente ou de complicações motivadas pela enfermidade ou a fatalidade prevista. 

As características do nosso sistema auditivo permitiram-nos sempre intuir. Sentir a intensidade do som, forte a fraco, a frequência sonora, mais grave ou aguda, as respostas que há no silêncio, e o timbre, indicando bizarras especificidades dos instrumentos de fuga – voz incluída, um tal timbre invejado. 
Era a partir das imagens e dos sons, por associação às ideias e aos sucedidos naqueles natais  que nos pensávamos e aos nossos contributos, mais e menos claros, a cada novo retorno das nossas, e eram sempre idênticas, utopias, não era? Era assim que a tua velha amiga estudara a melhor maneira de viver sem ti.

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