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Fragmentos

 CAMILLE

anotações por Berlim-Mitte


O Abandono

Uma, de outras, escultura de Camille Claudel [CC] no Alte National Galerie, Mitte, ilha dos Museus, no edifício que se assemelha a um templo grego. Já a admirava muitíssimo por telas travessas, as do cinema pois, claro. Interpretada pela Isabelle Adjani, depois pela Juliette Binoche. Diagnosticada como psicótica, tendendo para as noias numa altura em que não contávamos com os benditos medicamentos que hoje, em condições de saúde próximas, podemos tomar. Irmã de Paul Claudel. Tenho amigos que  dizem ser um poeta en...cantador; mas não ressoam aqui os escritos dele, lamento. Já a irmã, considero-a bastante mais talentosa que Auguste Rodin. Há até quem me tenha convencido, por a mais b e c — estudiosos e escultores —, que as mãos  e os rostos de Rodin eram, afinal, de Camille Claudel, o senhor apenas os modelava. Quanto ao mano-de-sangue-poeta, deixou-a apodrecer num asilo. Não obstante, a obra de CC, aqui chegada, tarde ou não é o que menos releva, pois as viagens às vezes ficam curtinhas, dispersas, e os regressos, como este, demorados; sobretudo quando polimos as cem pedrinhas da psique. CC é superlativa. É talvez a primeira grande exposição das obras todas dela; Começa a ser conhecida internacionalmente. Ela que é o talento precioso da escultura do século XIX.















Flohmarkt 

De Schöneberg, acordei dois  bolcheviques tardios em Coimbra e Lisboa, muito cedo para lhes pedir uma saudação antonímica, ou o aceno figurado e dilecto nesta História, e confirmar com um ancião, e bom livreiro, da Feira da Pulga que os sovietes tinham cabeças pequeninas. Ou isso, ou, sou a M. do Bart Simpson. Má ideia, que os EUA por esses dias cansam-nos...






Straße √ Street




Já o stencil que grita feminicídio em cada esquina do centro berlinense abre brechas ao utopismo largado ao destino, semi-adormecido nalgumas mentes. 

Quando cheguei ao graff, já tinha trocado o diário e as cartas por cadernos de campo com pequenas anotações. Num deles estava um pedaço do Diálogo Com o Cruel Parceiro de Elias Canetti e, então, todas as conversas que, na realidade, nunca se podem levar até ao fim, porque acabariam em violência, todas as palavras absolutas, impiedosas, esmagadoras, que frequentemente teríamos a dizer aos outros, se expressam ali. Ali permanecem secretas, pois um diário que não seja secreto não é um diário, e aquelas pessoas que estão sempre a fazer leituras em voz alta dos seus diários aos outros deveriam, de preferência, escrever-lhes logo cartas ou, melhor ainda, organizar saraus sobre si próprias. Conheci um, nos meus primeiros tempos em Berlim, que nunca fazia uma anotação sem, nessa mesma noite, ma ler em voz alta. Consegui, depois, reduzir essas leituras em voz alta a uma por semana, arranjando-lhe, para o efeito, convidados suficientes...

Quando regressei a casa já tinha trocado a mochila de recuerdos pela descoberta de uma autora boliviana anarquista, María Galindo, feminista bastarda, leitura sugerida por um grande amigo: Ultrapassar o discurso da vítima: o discurso da vítima não é um discurso subversivo. O discurso da vítima é conservador, cómodo [...]. Pode inclusivamente virar-se contra a vítima e tornar-se o discurso reaccionário. É o que está a acontecer às mulheres em todo o continente com a violência machista. A autovitimização parece ser a única forma de sermos ouvidas, quando na realidade é a maneira de nos silenciarem perversamente. Temos de ir além do discurso da vítima e para além do testemunho. A vítima só pode testemunhar a sua dor. Uma e duas e repetidas vezes até à anestesia total da sua dor. O que não pode é falar fora desse guião de vítima e é esse guião que tem de ser quebrado. Quando é que a vítima pode falar além do seu guião de vítima? Quando deixar de o ser, quando transcender a sua própria vitimização. Quando pronunciamos a palavra na primeira pessoa. Não em nome do povo, não em nome das mulheres, não em nome das mulheres em prostituição. A palavra na primeira pessoa é politicamente subversiva e poderosa.  GaLINDA, uma punque espaAcial. 
Caminhemos.

Bode Museum 



Qual é a diferença entre um sujeito supercilioso falante e um de boca fechada? Pensem com detenção e, tentem, bem mais que uma, duas, três vezes. É pouca! Nenhuma. A única diferença é rítmica: abre a boca e fecha a boca. Play e stop. Desligado quando não se liga a alguém, ligado contra-à-vontade mesmo que não veja interesse. A distorção começa no fechamento ao outro.

Certas actividades fazem crer aos sujeitos que são mais que aquilo que realmente são: um elefante na loja de cristais. O elefante“agente cultural" (nunca entendi esta denominação), os cristais, aqueles que se abrem ao desconhecido com extrema mobilidade. Artistas sem instituição. E é raro os encontrarmos onde estarão a imaginar que estejam. 
Os artistas não são «profissionais» da arte-nem-coisa alguma diferenciadora. Esses, são os outros!
Foi assim que aconteceu há dias, dentro de uma das catedrais da arte bombardeadas durante a segunda grande guerra – antes Friedrich-Museum, num estilo barroco concebido pelo arquitecto Ernst Eberhard von Ihne e construído entre 1898 e 1904; veria a sua identidade alterada para Bode-Museum (1948 - 1986), uma maneira de celebrar o criador Wilhelm von Bode –, num dos baluartes da colecção bizantina (única na Alemanha, alberga artes e artefatos do fim da antiguidade e do período Bizantino) da de esculturas, da numismática (são cerca de quinhentos mil objectos!) além de várias pinturas; conheci o mais luminoso sabedor triturador de carrancudos; um turco que ali labora há trinta anos entre a história, as estórias, a arte, e me abriu a porta a uma outra zona expositiva, toda em carmim, onde se pode ver a Angelus Novus (1920), de Paul Klee, que fora do berlinense Walter Benjamin e lhe fez grande companhia no exílio com protagonismo num dos seus derradeiros escritos; além de um dos filmes de  vivências múltiplas: Der Himmel über Berlin.

Para quem aprecia percorrer os espaços sem bússola ou mapas; com alguma intuição já saberá que quanto maior é a má-disposição e a arrogância menor é a perspicácia, já que traz sempre um dos seus maiores sinais agregado: o juízo caduco do parecer-ter em detrimento da abertura para deixar o outro ser quem é. Iluminados, mostrou-me, todos somos, assim as condições o proporcionem, ou o lugar. Os deste amigo turco criou-os para si e para mim neste dia; certamente para outras pessoas ao longo do  laboris. Ser carrancudo é muito anos sessenta. Do outro lado estará sempre alguém melhor ou pior; disso também se tem feito uma nação, ou será antes interstício, mundos depois dos muros e pontes?














Dorotheenstädtischer Friedhof




Mortos vivos. A tômbola das guerras deixou-nos várias músicas sem léxico. Uma coisa se reaprende a cada vaivém nesta cidade; alguns cemitérios são já novas casas-jardins-de-leitura. Lá podemos fazê-lo tranquilamente. Esteticamente atractivos, flora local escandalosa, algumas almas cujas cabeças temos à cabeceira (ou será ao contrário?). Neste, onde viveu-vive Bertold Brecht, vemos a pedra de Heiner Müller com um charuto generoso ali largado ao cimo da acastanhada lápide...


Jacob-und-Wilhelm-Grimm-Zentrum

Vor allen Dingen müssen wir ruhig bleiben...





Tirante a biblioteca dos Grimm, pois que a biblioteca dos manos está neste edifício. E não só. São nove pisos de títulos que vão da filosofia política à música e ao som, da estética à linguagem, da religião à psicanálise, da literatura à ecologia, e-muito-mais. Dá para soluçar de alegria. Somente acerca do gredoso situacionista —  como aquele red clay que os melhores Oleiros de respeitosas oficinas dizem ser mui permeável ao toque — Guy Debord têm cento e quarenta e sete entradas. Das bibliotecas da Humboldt, não sendo a nacional [voto n' abolição de tal adjectivo mas assim se chamam muitas Bibliotecas dos países ainda], é mais múltipla e rubra que (momento célere de pausa) uma...BNP (é somente um exemplo, não se amofinem).
Cada escriba, escritora, investigadora, pode garantir seu cantinho para estar ali a usar os livros De coluna estendida num quarto só seu  e levá-los até três generosos meses de empréstimo. 
Antes de mais, o que podia transmutar-se éramos nós...
Desta vez, ainda lanchei com o exilado Elagabal, aquele que se diz Aurelius Keiser. O que esculpe e desenha como mais ninguém.

Vor allem anderen liebt er seine Freiheit...


Na Alemanha, em Berlim e noutras cidades, caminha a pé ou de bicla, mas, especialmente a pé e de olhos no chão para que a tua memória jamais se apague...




Karl Marx (Humboldt-Universität)


...















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