O Imenso Comércio do Nada XII: a psicose do real imaginário
Perguntou Elias Canetti no célebre As Vozes de Marraquexe, ‘O que é que vive numa linguagem? O que é que ela encobre? O que é que ela capta?’
Todas as pessoas, em especial no universo artístico, se foram carimbando, ascendendo ou descendo nas hierarquias de prestígio adossadas às mesmas intolerâncias, não necessariamente no domínio do debate, mas intensificando quem tem ou não a possibilidade, e até o direito, a debater.
Paul Ricoeur lembrou, e bem, que quando nos damos conta da existência de várias culturas e não uma só, apercebemo-nos do fim do monopólio cultural. Seja ele, ou não, uma ilusão.
Figurões-rinhas que mais palram tendem a acertar pouco, apenas desafiam o velho espelho que nunca lhes devolverá a imagem que têm para si de si.
A pós-cultura é indissociável da religião, por ser nela que proliferam crenças, obstinações, hordas de fiéis seguidores; ao contrário da religião enquanto instituição canónica (descartemos aqui o escrutínio a quaisquer morfologias do sagrado, ritos, símbolos celestes; em suma a ciência das religiões e tratados já sustentados por vários autores, de que destacamos um dos mais glosados, Mircea Eliade) da qual alguns humanos prescindem como modo de se libertarem dos medos, se sentirem em segurança e, como mencionei num pedaço anterior seleccionado nesta prosa-ensaio mais extensa/o, da qual só pequenas minorias se emancipam substituindo o vazio que a ausência de fé, crença, culto, mysterium, lhes deixou por práticas da dita-cultura no mundo global, onde qualquer artista ou arte se equivale apesar das suas diferenças, e se diferencia ou destaca pelo número de aparições públicas, relações com instituições, seguidores.
Quando somos confrontadas com a morte das nossas descobertas; a possibilidade da existência de outras pessoas e de que nós sejamos uma das outras, ou uma entre as outras, extingue os sentidos ou objectivos anteriores, passamos a perambular pela história das civilizações e das tradições como se nos tivessem deixado vestígios de destroços capazes de legitimar o nosso olhar, ainda que estejamos em segurança. Ou seja, tendemos a transformar práticas artísticas emergentes numa certa altura, ou que com e sobre ela dialogam, num ‘museu imaginário’, operativo apenas dos nossos privilégios sociais, que não têm necessariamente de ser de ordem económica, uma vez que a precarização do universo artístico integra também o imaginário museológico. Resulta na recusa do outro.
Num ambiente de coma vigil as retóricas passaram a ser doxas, onanistas, uma garantia de manutenção dos mesmos lugares nos imaginários de exibição pública ou semi-pública. Uma base de apoio heterogénea será sempre necessária, já que assegura a deslocação dos sentidos, é um bom fiador do quinhão de exibição. O objectivo não é o encontro com a diferença, mas passar a ser voz da diferença in experienciada, firmando, desta maneira, que nada mudará.
Por conseguinte, uma poética relacional, ou reclamadora do direito à opacidade, tal como propostos por Edouard Glissant, não entrariam em equações desta estirpe, uma vez que, usando a lente de André Gide sobre Montaigne, ‘aquilo que habitualmente se cala, que se esconde, é isso que tem mais prazer em dizer, em expor’.
E, se há um conhecimento e uma arte preciosos, eles viriam da exclusão e dos processos persecutórios, seria aí que se fundariam as ditas-Humanidades; e um autor como Fred Moten, ao convocar a possibilidade de resistência dos objectos associando-a às pessoas escravizadas, às chicotadas sofridas; e esse conjunto a disrupções da performance negra, seria essencial, não apenas por isso, mas por ter desenvolvido de modo bastante interessante um conceito como o de 'performance fugitiva’.
Recordo um dos pormenores relevantes no pensamento trágico de Nietzsche, pelo simples facto de ele sintetizar a complexidade deste detalhe repetido entre agentes da pós-cultura; mencionava o filósofo alemão que a vida era a grande fonte de conflitos, e, como tal, uma cultura que nos quisesse proteger dos conflitos só contribuiria para que esses aumentassem, uma vez que eles são parte da nossa existência. Convoco esta linha de sentido, para esclarecer quanto às supostas forças em sentido contrário que pudessem produzir determinadas práticas artísticas. A vida produz dor na sua natureza, não na sua cultura.
Assim, a cultura em vez de nos proteger dos embates, do sofrimento, teria como intuito primordial fortalecer-nos; permitir que a dor fosse transformada em movimento, em criação artística.
Há outro aspecto, que gostava de ver aflorado neste debate: reduzir um combate, uma luta ou uma mudança artística, às palavras seria o mesmo que procurarmos uma essencialização em algo que resulta de um desajuste, de uma não definição; um corpo não é nada, e parece que foi isso sempre que o poder quis, reduzir-nos ao corpo. O que muda o mundo são as consciências, as pessoas, não as palavras escolhidas que por si, isoladas da acção, sejamos honestas, nunca mudaram nada. Viver demasiado, ou quase-exclusivamente, nas palavras faz parte da psicose da pós-cultura, amplificada pelas redes-ditas-sociais onde os psicóticos trocam o real pelo simbólico e imaginário, renomeiam para destituir um poder e instituir outro poder.
Todas as palavras podem designar um desajuste, aprecio todas; as que foram metidas na tumba a fermentar cadáveres foram-no sem imposição ou por tratado. A arte só existe para que a realidade não nos destrua, como diria Nietzsche, não nos enterrem, nem nos enterremos, em mais neologismos, ou muros, em detrimento de pontes ou ligações imprevisíveis.
Numa altura em que se exerce a violência da visibilidade constante, temos o direito ao desaparecimento, a sermos desairosas, a dizer taxativamente que as ‘revoluções’ de agora mudam quem manda, autoriza, dispõe, sugere. Mas, o que mais desejam não é acabar com o mandar, mas com quem manda e autoriza; é ser vizir no lugar do vizir.
este fragmento foi republicado pelo jornal on-line Esquerda.Net
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