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Fragmentos


 O Imenso Comércio do Nada XXIII
Cultura? Estar entre*



Usamos o substantivo feminino cultura a partir da nossa concepção: estar entre. Estar entre prestar culto a um ou diversos cultos. Cingimos cultura a quaisquer objectos artísticos; não omitindo a sua inseparabilidade dos distintivos de classe e ratificando a impossibilidade de abstrair artistas e obras musicais mais do que do lugar de onde provêm das emoções estéticas e sociais que experimentam e provocam. 

Imaginem a cultura enquanto um curso de água natural: heterogéneo, indiferenciado. Esse curso está entre. Durante o percurso acolhe trajectos de rios, ribeiros, lagos, poças; a jusante parte de uma tabulação dos valores das diversidade e diversão, do entretenimento; todos mergulham no curso como fuga ao tédio, ao hermetismo, a certas manifestações da vontade. Ao acompanharmos este movimento aparentemente natural, vemos como esse curso de água desagua, irremediavelmente, num lugar prenhe de líquidos convertidos, apesar de se tratarem de fluidos nem sempre claros, uns mais transparentes outros menos asseados, nenhum deles possui uma natureza isolada. Estes líquidos são trocados por valores culturais, ou um preço. Curiosamente, a nossa concepção de cultura está mais arraigada na antropologia do século XIX e inícios do século XX. Recentes tentativas de definição não se distanciam das de Tylor e Boas. Enquanto cidadãos e cidadãs da “infelicidade humana” somos, escreve Fondane, “seres metafísicos”. A formalidade de todas as ciências sociais humanas, incluindo a filosofia mesmo que afirme não o ser, empenha-se na identificação de princípios e em promover “critérios de valores”, “reflectir acerca do decorrido”. É obsequiosa e crua esta asseveração de já tudo ter sido falado, defendido, escrito; se acrescentarmos uma vírgula aos manuscritos, às pensadoras e aos pensadores que em cada suplício e em cada estímulo, muitos anos antes de nós, encontraram os limites e as fronteiras, é um feito. Dito isto, quando denominamos cultura não estamos a convocar nem a definição do antropólogo americano Franz Boas nem a acepção anterior do antropólogo britânico Edward B.Tylor. Rejeitamos que métodos indutivos expliquem por si leis da evolução das cultura e sociedades; ao priorizar relações de parentesco, originalidade, singularidade, relativismo cultural e costumes, como defendido por Boas, desejamos apenas, e a todo custo, justificar uma realidade a partir de um ponto de vista formalista. Deixamos também de lado a expressão da vida social dos humanos adquirida de modo inconsciente, colectiva e independente da hereditariedade quando remetida para as realizações materiais, já que assim sociedades primitivas serão, como foram, excluídas da cultura. Todavia, a ressalva, este raciocínio de Taylor, tem como fito pensar os humanos extirpando-os de teomitias, sendo descritiva e não normativa, e, por isso, apesar de mais antiga, estará mais conforme a um estar entre tal como aqui propomos; mesmo que saibamos da extrema dificuldade, quis tacet consentire videtur, em pensar outros humanos, logo cogitar sobre nós, vazios dos preceituários que nos compõem. 

As visões temporais têm proporções relativas aos universos culturais e sociais. Independentemente de noções estéticas, o relativismo cultural preconizado pelo antropólogo Franz Boas tem vindo a ser substituído por uma dimensão ontológica em que o sujeito age e percepciona  sem estar centrado em si; se bem que o humano seja um íman poderoso das outras forças sensíveis atraindo figurações, artefactos, símbolos, ao lado do movimento dos corpos observados enquanto agência apetrechada de valores. Ao retirar o sujeito do centro, não é só a apreensão de que ele não é o único agente sensível a extinguir-se. Ao transferirmos o mundo sensível das artes para o mundo das coisas, o sensível pode manter-se dentro de experiências modernas ocidentais, continuar a pensar de onde se pensava a experiência/experimentação de outros mundos, como nos dizem o teórico de performance Fred Moten e o activista e professor universitário Stefano Harney num estudo sobre negritude e governança a que damos continuidade no ensaio em curso.

A seguir à independência das outrora colónias portuguesas, sob a égide do altruísmo e da democratização, começa a ser vincada uma facilitação na promoção de modelos artísticos através de práticas da cultura com uma tendência política de esquerda, mas, concomitantemente, as demagogia e multiplicação dos matizes em torno da hibridização das artes. Estas facilmente derrapam para formas inquisitórias e pouco aptas a acolher tal, previamente defendida, heterogeneidade. Terá sido, com certeza, uma maneira de corresponder às expectativas dos poderes políticos e simbólicos, dos media e de cânones; os princípios das transmutações culturais impelem ao exagero até que as sociedades se reorganizem equitativamente e pluralmente. Numa altura de consolidação democrática, as fronteiras entre ‘alta cultura’ e ‘baixa cultura’ diluíram substancialmente discursos mais feéricos; a cultura não podia permanecer património de uma elite, havia uma obrigação moral de a deixar ao alcance de todos, daí que as alfabetizações e os campos de experimentação, ou mesmo a convicção peregrina de atribuição de mundo a mundos que antes não tinham, certamente, mundo, como a metáfora deixa ainda transparecer, tenha sido bastante útil à forja das clivagens próprias dos espaços de reclamação da diferença. Seja como for, não corroboramos dogmas inquestionáveis; lembramos que esta ideia – a de que deixou de existir uma separação entre alta e baixa culturas – integrou um programa político-cultural americano do pós-guerra, uma agenda que recaiu sobre uma cultura sem contraditório e, como tal, morta. Se tudo se equivaler, em vez da utopia prometida temos um sintoma da morte da arte, no sentido hegeliano, tal como abordado por Keiser no primeiro Caderno AH!.

Quando se representa o zeitgeist, aquilo a que o filósofo e ensaísta espanhol José Ortega Y Gasset chama de “espírito do tempo”, mantém-se a pulsão que assevera a função libertadora dos problemas e erros anteriores produzindo em nós o mito da cura das feridas do colonialismo e das desigualdades, e, tal como a religião ou a cultura-tida-como-erudita quando indecifrável aos que não possuem aquilo que o filósofo e crítico literário inglês Terry Eagleton entende como ‘um gosto específico’, esse espírito aplica as mesmas interrogações sobre a condição humana, as guerras, as ditaduras e o pós guerra. 

À cultura que alguns criticistas designam de ‘popular’ e até ‘cultura mundo’ por ser acessível a todas as classes sociais indiferentemente dos ganhos, e resultar numa convergência de várias práticas da arte, chamamos só cultura por que a partir da reprodução dos objectos artísticos, sejam estes discos ou livros, tais divisões traduzem resultados e consolações recíprocas. O que sobreviveu a estas conceptualizações da cultura terá sido uma ‘cultura de massas’? Incapazes de fugir a este ponto de vista – depois do pós-guerra, do alargamento dos meios de difusão, do desenvolvimento de novas tecnologias, há um aceleramento nas exibição e efusão das artes – diremos que… sim. Estas nuances não deixam, no entanto, de ser cultura nem perdem turbulência; estão entre. Entre o que desejam parecer ser e aquilo que são quando estão em perfeita comunhão com as indústrias culturais, crendo que sem tais meios de promoção definhariam. Ainda que se multipliquem novos desígnios para agarrar a palavra a um ou outro significado, num último recurso apenas sai enaltecido o sistema de crenças de enunciadores e interlocutores. Há nominatas usadas na cultura: ‘hibridismo’, ‘descanonização’, ‘world literature’, ‘world music’, entre outras. Não nos perderemos a descortinar a sua origem nem possíveis intenções, seria outra tese; mas podemos reiterar que se o mundo global, tal como nos é hoje comunicado – na diluição das fronteiras geográficas, do gosto, na tolerância – ganha robustez na passagem da década de oitenta para a década de noventa, o vazio do espírito convive com o seu cultivo e o isolamento dos seres sencientes. Não que antes não tivesse sucedido, porém, com as pontes criadas a seguir ao fim da ditadura salazarista, foi inevitável a implementação de opiniões de concórdia e pluralismo, havia que desviar quaisquer suspeitas sobre o fascismo entranhado em cada pessoa. A realidade é sempre mais turva ou mais fantástica à medida que aproximamos a lupa dos repertórios. A este respeito gostaríamos de lembrar esta passagem do escritor americano Herman Melville que o passar dos anos não mitigou:

[...] A Verdade é a coisa mais patética debaixo do Sol. Tentem viver segundo uma Verdade e acabarão na sopa dos pobres [...]

E ainda esta de Aimé Césaire:

[...] Sim, valeria a pena estudar clinicamente, em detalhe, os procedimentos de Hitler e do hitlerismo e revelar ao distintíssimo, mui humanista e cristão burguês do século XX que carrega em si um Hitler que é o seu demónio, que se o vitupera é por falta de lógica, e que, no fundo, o que ele não perdoa a Hitler não é o crime em si, o crime contra o homem, não é a humilhação do homem em si, é o crime contra o homem branco, é a humilhação do homem branco, e ter aplicado à Europa procedimentos colonialistas que até aí abarcavam apenas os árabes da Argélia, os coolies da Índia e os negros de África [...]


É o jornalista e escritor britânico Jonathan Sacks quem nos reconduz detalhadamente, a partir de um livro sobre fundamentalismos culturais-religiosos, na afirmativa categórica de que o século vinte nos deu “o máximo de escolha” deixando-nos “o mínimo de significados”. E corroboramos. Se atendermos ao modo como a palavra foi secundarizada em detrimento da imagem que, sobrepondo-se muitas vezes a ela nos meios de comunicação social, também a suporta e dirige à vez ora sublinhando ora esvaziando o significado da ideia ('mensagem'). A partir dos anos oitenta, com os meios de comunicação televisivos no auge, isto é notável, e talvez tenha chegado ao cume na viragem da década de noventa para o novo milénio a partir das redes sociais. Auxilia agentes culturais e lança-se na direcção de uma uniformização da linguagem escrita e oral sobre música popular ao ponto de práticas oriundas de mundos artísticos com sensibilidades e objectivos desiguais passarem por dialogantes, quando não iguais, ao gravitar nos mesmos itinerários mediáticos. Os circuitos da cultura envoltos de um contido valor político-social são refeitos em prol do número de visualizações; sociedade e política atropelam-se numa frequência forte, recreativa, da ‘cultura do espectáculo’ para convocarmos o axioma do mandarim Guy Debord, um dos mais audazes pensadores das Internacional Situacionista, a par de Raoul Vaneigem, e Letrista, a par de Maurice Lemaitre, François Dufrêne, Gil Wolman ou Gabriel Pomerand com os seus recitais letristas e a criação das revistas Dictature Letriste e Ur. Escreve Vargas Llosa no seu livro Civilização do Espectáculo que esta cultura pretensamente avançada, singular, democrática, plural, disruptiva; propala, fruto do desenvolvimento tecnológico especialmente a partir dos anos noventa, o “conformismo através das suas piores manifestações: a complacência e a auto-satisfação". Daí que as bolhas de fragmentação da década de oitenta em diante nos pareçam mais líquidas  que as anteriores. Llosa designa-a de “pós-cultura” e, por momentos, fomos tentadas a replicar este “estarmos após a cultura”, não tivéssemos atempadamente concluído durante o processo de escrita que de nada valeria usar o prefixo ‘pós’ sendo o nosso objectivo criar desambiguidade e não infinitas terminologias e reformas de sentido; as quais nunca mudam, verdadeiramente, os sentidos que nos dominam. Atemo-nos, então, a este substantivo facilmente reconhecível numa acepção elocutória de sentidos múltiplos. Cultura. Cultura só. Que nunca é uma coisa só. Neste caso, não serão desprezadas voluptuosas crenças, aguerridos hábitos, que um domínio como o da música alberga ao contrário da religião católica enquanto instituição canónica. Descartando, claro, o escrutínio às morfologias do sagrado, ritos, símbolos celestes, aprofundados pelo estudo das religiões e nos tratados do mitólogo e professor romeno Mircea Eliade. A religião e a fé podem ofuscar, os seus profetas imolam-se numa postura imodesta e modesta, vaidosa e insegura, autoritária e filantropa, matam e salvam, como a cultura e a música. A religião da qual alguns humanos prescindem para se libertarem dos medos, se sentirem em segurança, praticarem uma ética ou uma transcendência, substituída por outras práticas culturais; esta de onde só pequenas minorias se emancipam substituindo o vazio que a ausência de fé, crença, culto, mysterium, lhes deixa por práticas da cultura divergentes no mundo global. É esta digressão para a qual apontamos quando nos referimos a Cultura, que é sempre ‘popular’, mesmo se dotada de erudição, por não existir sem pessoas, comunidade, sociedade, povo. Um mundo onde qualquer artista ou arte se pode igualar até se possuído por nítidas especificidades e artifícios linguísticos e se diferenciar pelo número de aparições públicas, relações com instituições culturais ou políticas, seguidores. Não é o que temos? Desde a segunda metade da década de noventa do século passado estamos a ser mediados por números e quantificações, de palavras também; a dianoia ocupa um palco privilegiado na senda culturalista; quanto maior o número de vocábulos em consonância com um programa de transmutação dos valores que nos domina (é irrelevante se com uma imagem chocante ou enternecedora) for visualizado maior é a adesão a esse pensamento. As pessoas do universo artístico vão sendo carimbadas, ascendendo ou descendo nas hierarquias de prestígio adossadas às intolerâncias ou estereótipos que as dominam, não no palco do debate: a pólis, mas gritando quem tem ou não a possibilidade, e até o direito, a debater. Ricoeur diz-nos que quando nos damos conta da existência de várias culturas e não uma só, apercebemo-nos do fim do nosso monopólio cultural. Seja ele ou não uma ilusão. Para quem se bate pelo seu aguilhão tenebroso, a ilusão nunca é contemplada. Confrontadas com a morte das nossas descobertas, a possibilidade da existência de outras pessoas e de que nós sejamos uma das outras, ou uma entre as outras, extingue os sentidos ou objectivos anteriores. Perambulamos pela história das civilizações como se ela nos tivesse deixado vestígios de destroços capazes de legitimar o nosso olhar, ainda que estejamos em segurança. Alteramos práticas artísticas emergentes de um quadro histórico ou social num museu imaginário operativo do nosso status; estas mudanças não têm que ser de ordem económica uma vez que a precarização do universo artístico integra o imaginário museológico. Num ambiente de coma vigil as versões onanistas correspondem a uma garantia de manutenção dos mesmos lugares nos imaginários de exibição pública ou semi-pública. Por isso, uma base de apoio heterogénea será bem-vinda, já que preservando a deslocação dos sentidos garante um bom fiador do quinhão de exibição. O objectivo da cultura pode, assim, ser ou não ser o encontro com a diferença. Pode, simplesmente, tornar-se a voz da diferença in experienciada firmando que nada muda. Por conseguinte, uma poética relacional como a proposta por Glissant bem como a sua metáfora do direito à opacidade não entrariam em equações desta estirpe. Ou, usando a lente do escritor André Gide sobre o filósofo Michel Montaigne, “aquilo que habitualmente se cala, que se esconde, é isso que tem mais prazer em dizer, em expor”. Quando nos repetem que Hitler é uma consequência de Rousseau, se alguém nos disser que Rosseau era mais artista que teórico, como o fez a 18 de Janeiro de 1976 Vizinczey no The Sunday Telegraph, não iremos acreditar. A primeira tornou-se uma opinião tão estabelecida que petrificou a altura em que foi proferida e difundida por várias vozes, ninguém se atreve a contestá-la. A frase de Rousseau “o homem nasceu livre e está acorrentado por todo o lado”  vale para nós menos que aquilo que o autor nos deixa ‘nas’ Confissões.

Um facto curioso da sociedade contemporânea, no caso da portuguesa especialmente a partir dos anos oitenta, é a figura do teórico-criticista ter dado lugar à do cantor que enche recintos de festivais, do comentador televisivo, do humorista, do polemista ou propagandista, auferindo estes uma presença maior nas secções de cultura da imprensa escrita portuguesa e nos espaços audiovisuais de comentário; se a investigação se estendesse novo milénio adentro, de pessoas-personagens com presença assídua e sonante nas redes sociais. Não que estas não nos possam transmitir um pensamento crítico bem fundamentado, o problema surge quando nas nossas pesquisas a décadas anteriores encontramos demasiadas vezes na orla do espectáculo as participações mais acutilantes. E se assim foi nesses anos seria de prever que no regime dos algoritmo e vigilância característicos dos “não-lugares”, para usarmos a célebre expressão do antropólogo e etnólogo francês Marc Augé, repertórios da segunda metade do século anterior se eclipsassem ainda mais do espaço mediático que nos anos precedentes. Por opção de afastamento daqueles que detêm uma experiência reflexiva nos temas ao pensar no capital temerário dos meios, e na indecorosa face desta elocução de sentidos: tão múltiplos de uma suposta vontade como queridos homogéneos no resultado. Só uma investigação que usufrua de uma bibliografia contra-a-corrente do universo literário-musical nos poderá dar uma leitura abrangente das ambiguidades e contrariedades do pensamento das artes e das artes do pensamento.

O descrédito da crítica a potenciais cicerones das artes já há muito é previsto por autores; o escritor e crítico George Orwell ou o crítico George Steiner, dois exemplos contemporâneos; não é pois de estranhar que também os intelectuais se passem a demitir do compromisso cívico recusando  participar no jogo da ostentação das suas ideias. 

Na nova era da cultura, mais do que a inteligência do sensível ou a emoção estética, privilegiam-se os engenhosos, a sua capacidade, tal como as máquinas, de adensar o volume da corrente de emoções rápidas. A  comunicação cultural é um caudal de ventos ciclónicos. Na passagem da década de oitenta para a de noventa, os gestos mais despojados do ser senciente são os discursos das próprias artistas no mainstream (ideia que é desenvolvida num capítulo deste trabalho). Na transição da década de noventa para o início do novo milénio impõem-se pela omissão da  indigência por trás das artimanhas lexicais que dão a séquitos de fiéis a ideia de que uma vanguarda daí despoleta a partir de blogs e videoblogs, portais como o myspace ou os primeiros websites de música. Com efeito, a seguir ao vinte e cinco de Abril de 1974, as clivagens expostas pelos agentes dão azo  a um novo fluxo de axiomas de atribuição de prestígio através de plataformas como o twitter e o facebook onde indústria e  crítica, mantendo os modelos convencionais de escrutínio, se projectam através de novíssimos equipamentos tecnológicos de controlo, aceitação, bloqueio. De velhos programas incidentes na bifurcação: por um lado, o regresso da vontade da verdade, ao tentar demonstrar a falha de todas as filosofias precedentes onde dominava o ideal ascético, a verdade da arte vista como uma instância suprema (deus); por outro, a assumpção de que em toda a verdade coexiste a ficção, o valor do real e de uma verdade artística inseparável da vida dos sujeitos. À boca pequena diz-se que o biógrafo enquanto artista fracassado é uma figurinha banal, mas a pergunta a ser feita, então, seria esta: por que motivo estas figuras se tornam burocratas da cultura, chegam a directores de museus, jornais, criam e presidem partidos políticos sem plano consistente para o desenvolvimento de actividades artísticas? Há uma vontade de poder cultural que nasce da inveja, e também há uma vontade de poder que nasce da artista, ou do artista, em dificuldades.


*fragmento da investigação em curso




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