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Fragmentos


O Imenso Comércio do Nada XXIV
Viver os instantes: o que fica do que foi?



    Talvez muita gente considere que na nossa aldeia global todas podem ser historiadoras e filósofas, e que a história e a filosofia são desprovidas de entusiasmo e sagacidade numa época de atenção abreviada. Tentamos mostrar que não é bem assim. Que estas disciplinas são uma força vital e comunicam entre si, que algumas das melhores fontes para encontrar indagações e pensamentos filosóficos densos e dimensões históricas que nos explicam enquanto sociedade são os discos e  as conversas com compositoras. 
    Os substantivos femininos ficção e realidade são o pentagrama ideal para discutir provocações e problemas que intrigam as comunidades artísticas e a sociedade, como sejam a condição da mulher compositora (as suas aspirações, conquistas, dificuldades), o querer, o poder e a vontade, o eterno retorno de todas as coisas na arte e na história, a transmutação de valores da tradição e a utopia desejada. Se lhes acrescentarem as preposições pró e contra mais ainda.
  No Nascimento da Tragédia Nietzsche apela aos nossos sentidos: o que está atrás do silêncio é um outro silêncio difícil de reconstituir ou de ser visto na transparência. Trata-se de um silêncio que nenhuma das flores de retórica do inexprimível consegue traduzir em palavras: o silêncio terrificante, misterioso, abismal, da música. 
    Diz-se que França teve os Iluministas, Inglaterra os Empiristas, e a Alemanha o Idealismo. Se com Idealismo se querem referir à concentração na mente, nos pensamentos e nas ideias, tendemos a concordar. São vários os exemplos de filósofos alemães que alargaram conceitos reverenciados dos pensadores da Grécia Antiga, como o de anamnesis do mais famoso protegido de Sócrates, Platão. Mas falemos para começar de três a partir dos olhares múltiplos que convocam:
George W.F. Hegel “julgava-se cristão, tanto como Aristóteles se julgava platónico”, a sua tese basilar era a de que a história e o espírito-santo eram o mesmo; para o então jovem Hegel a história não era feita para o sujeito, muito pelo contrário, era o sujeito que era feito para a história, quem o refere é o poeta e crítico romeno Benjamin Fondane. Fala-nos do “homem” como praticamente todos os autores ao longo da história, substituímos por sujeito de modo a albergar na nossa abordagem todos os géneros cabíveis nas revoluções do pensamento, pois, como sabemos, até hoje foi quase sempre o homem notabilizado de ente pensante e radical.
    Apesar das diferenças entre a história vivida e a história contada, quer uma quer a outra resultam da imaginação e da interpretação das coisas passadas à luz do presente. Falemos então de uma imaginação interpretativa envolvida numa quimera. Exprimida por rastos axiomáticos, move-se dentro de reteorizações, pelas transigência e intransigência, pelas insurreição e renúncia, pelas representações e abstracções do tempo dos sujeitos. Se assim não for, não temos artistas nem pensadoras, mas papagaios e caturras. A repetição de certos sinais implica uma atenção redobrada a outras produções de sentidos no seio de um movimento revigorador dos planos artísticos ou historiográficos não anulatório da tradição mas antes cumulativo. 
São os olhares de hoje que mantêm a tradição de um pensamento viva, o mesmo se passa na música. A história da música está feita de eternos retornos a partir de tempos (musicais e literais) e valorações que a suportam por nostalgia, ressentimento, justiça, ou ‘simples’ inventividade.
    Entre as inúmeras contradições do seu exercício aforístico descontínuo, de iminência e fragmentação, que nunca fez questão de esconder na radicalização da linguagem, Nietzsche afirma-se contra Platão e os pré-socráticos. No entanto, no eterno retorno de todas as coisas, o autor volta à anamnese platónica, bem como às ideias de Hegel às quais também dizia opôr-se. Por outro lado, ainda que se afirme crítico feroz do pensamento judaico-cristão, toda a sua filosofia é pensada a partir da moralidade cristã. 
    Partilho convosco por que é que em alguns instantes me confrontei com os limites do espírito [ou da alma, para Heraclito], de como é irrealizável e extenuante esta demanda por muito longe que consigamos ir. E talvez por isso o fenomenólogo alemão Peter Sloterdijk conclua que os métodos filosóficos são memórias desacauteladas e confissões dos autores, e também não por acaso, a filósofa judia Hannah Arendt tenha vincado como um assunto eminentemente actual é conduzido na brecha entre o passado e o futuro revelando-nos modos paradoxais, mas nem por isso acidentais, de denúncia das religiões como ideologias. A autora acabará por reflectir como provêm de um tempo muitíssimo anterior ao comunismo, atribuindo ao ateísmo o alvo religioso das primeiras impressões  denunciadoras e laudatórias. É Friedrich Engels quem num instante recorda que nos anos quarenta parisienses se usava dizer “Então, a sua religião é o ateísmo”, clarificando que tal se deveria ao facto de germinar nas pessoas a ideia de que um sujeito sem religião só poderia ser um monstro.
    Arendt relembra-nos a célebre questão de Nietzsche em Assim Falava Zaratustra: “Se existissem deuses, como poderia eu suportar não o ser?”
    Na sua breve história do bolchevismo, o professor da Universidade de Notre Dame Waldemar Gurian fala-nos de um movimento a operar “como uma religião social e política secular”; se com esta afirmação queria realmente notar que aquilo que os crentes nas religiões convencionais atribuem a deus e os cristãos a Jesus Cristo é imputado pelos bolcheviques às leis do escólio histórico, social e político sob a adjectivação “científicas”, podemos dizê-lo a respeito de tudo, e principalmente do que hoje entendemos por cultura e ter cultura (uma digressão que faço na dissertação de doutoramento, e já aqui aludi num fragmento anterior).  
Vemos mais facilmente um monstro, gélido e exautorado, a partir da música e da filosofia, nas repetições e interfaces dos instantes, que nas técnicas da escrita e demais burocracias culturalistas, mais conformes às reformas de sentidos comuns a todos. É que tanto nas fissuras do pensamento racional como na sua extrema radicalização confirmam-se necessidades de mudança. Especialmente que nem todas as pessoas estão dispostas a fazê-la por não terem essa necessidade. A mudança é uma ameaça ao culturalismo quando manter o lugar das velhas técnicas é o que mais deseja.
    Na linha freudiana, a  consciência pessoal não advém do exterior, provém da maneira como cada pessoa constrói ou destrói a sua cédula. Uma cédula que hoje se confunde por ter sido conspurcada e convertida num cartãozinho de identidade artístico, impessoal, absoluto, sem ligação à raiz de si.
    A seguir ao 25 de Abril de 1974 até hoje, Nietzsche tem servido para reiterar à superfície a vontade de mudar, algo que possa confirmar a radicalidade de um pensamento nacional. Até quando ele não existe.
Sempre nos convenceram que lemos melhor os clássicos que os seus contemporâneos. Os filósofos do passado foram um cartão de acesso não à nacionalidade, mas quase: a uma sociedade e a uma cultura em reconstrução a seguir ao fascismo. Uma maneira de mostrar a alimentação teórica (melhor ou pior digerida) que mexera com as estruturas repressivas, tal como o fizeram algumas religiões ao tomar para si doutrinas e devolvê-las às massas.
Mas as canções capciosas com os rufos de tambores do neo-realismo que ainda pairam entre nós, a sacralização dos hábitos, as parangonas ‘todas por uma’, ‘o povo unido jamais será vencido’ são também aquilo que Nietzsche viu como espinha dorsal na própria existência dos comuns mortais que só assim poderiam existir, por via do inculcar de padrões e regras favoráveis à coesão dos grupos culturais. Um vislumbre de uma propensão para assegurar a gerência e as tropas nas capelas.
    Seremos (artistas, filósofas, historiadoras) decodificadoras do quotidiano se retornamos às mesmas formas? Quem nos garante que a melhor maneira de matar uma é instituir outra se todas retornam?
    Regressemos a Platão para melhor se apreender vasos comunicantes já traçados. 
O filósofo grego dava continuidade ao legado do mestre Sócrates e ampliava-o com as suas próprias teorias na alegoria presente na Caverna. A este propósito, cotejemos uma reflexão: "os platónicos de hoje renunciaram aos discursos vazios e às metáforas do seu mestre; hoje em dia já ninguém acredita na famosa anamnesis, quem o escreve é Benjamim Fondane. 
Oriunda do órfico-pitagórico, a anamnesis sintetiza a crença na metempsicose das almas. É uma figura do pensamento servente. Numa oratura serve para fingir que, de súbito, nos lembramos de alguma coisa fundamental ao discurso que estamos a proferir. 
A reminiscência estudada por Platão dentro da teoria das formas viria a ser preterida por Aristóteles, já que passa a usá-la para se referir apenas à recordação de sensações do passado, em oposição à aisthesis sempre que se queria referir às sensações do presente. Se retomarmos esta ideia para a música e a literatura conseguimos facilmente dar conta dela em quaisquer actos discursivos que repetem especificidades do passado, dados, episódios concretos, figurações, símbolos, alegorias, sem se deixar manietar por emoções particulares. Lembremos, por exemplo, O Ano da Morte de Ricardo Reis de José Saramago na figura fantasmática de Fernando Pessoa que vem para dialogar com o seu outro (um dos heterónimos feito personagem no romance de Saramago) ou  de Próspero em The Tempest de William Shakespeare (quando narra a Miranda os impropérios que o irmão dela lhe dirigiu). Num texto como numa partitura é um gesto que se aproxima da analepse, na psicanálise da anamnese – um movimento em que  pacientes recordam traumas passados; algo que, em certa medida, também podemos atender na contemporaneidade no âmbito de uma vertente da historiografia conhecida como psico-história: quando há uma partilha testemunhal de sujeitos participantes de guerras e conflitos, renovações políticas e culturais.
A maioria das pessoas vive com o véu sobre os olhos, com uma noção distorcida de ‘verdade’ e ‘beleza’, ‘certo’ e ‘errado’, ‘perfeição’ e ‘imperfeição’. A imagem da caverna só se torna poderosa por nela existir uma fogueira. A imagem informe, imprecisa, difícil de definir das coisas do mundo cultural e das artes contempla a falta de imaginação, a indiferença, e a especulação. Um grupo de pessoas preso numa gruta escura iluminada por uma fogueira gigante atrás de si [ou na caverna de Platão] pode ver apenas as suas sombras e imagens a luciluzir nas paredes. É esta a sua realidade. 
As mentes mais inquietas observam as tonalidades mais claras e tentam perceber o seu mundo, todavia a verdade ilude-as sempre. Quando uma das pessoas em cativeiro se consegue libertar, emergir para a luz do dia fora da gruta, é cegada pela luz do dia; acabará por ver só uma representação tosca da realidade. Pode adaptar, com o passar do tempo, os seus sentidos ao novo ambiente e passará a ver com maior nitidez os contornos da paisagem. E o que acontece? Essa mente, agora iluminada pela forma ‘natural’, clarificada pelo ambiente que finalmente conheceu, retorna à gruta escurecida e espalha a notícia sobre o mundo que conhecera para lá das catacumbas. Os outros presos seguem eventualmente o mesmo itinerário, enchem-se de coragem e vão até lá fora experienciar? De acordo com Platão, convocando o seu mestre Sócrates, nada disso sucede. Depreende, desta maneira, que estas estariam mais habilitadas a matar o profeta por simbolizar uma ameaça às coisas já instituídas e aceites.
A predilecção humana pela escolha do caminho mais fácil das formas que se fundam como se pudessem, assim, matar as já fundadas, o menos nebuloso, é característica das sociedades inclinadas para existências que evitam sempre que possível a mudança. As pessoas que vão à frente no caminho são ridicularizadas, canceladas, silenciadas, por vezes acabam mortas ou suicidam-se.
O próprio projecto do fausto germânico, em que se reconhece Otto Bismarck e Helmuth von Moltke, apesar de delatado por Nietzsche, não deixa de estar familiarizado com os gregos e é o próprio quem o declara ao escrever que não é a Alemanha que depende da Grécia, mas sim esta que não pode deixar de depender da Alemanha. Procura-se ressuscitar a Grécia graças não “ao céu das ideias” de Platão, para Arendt muito diferente da “terra das ideias”, mas ao galho novo do espírito alemão. 
Na terra das ideias, o primeiro inimigo da arte pode ou não ser o significado que a reprime, ad rem, é esta terra bastante idêntica à que vê o platonismo como o cristianismo (ópio do povo), a política como religião; e antagonista desta onde a cultura é um estar entre, nos interstícios de um mapa não autografado, sem o berço nem um lugar para o caixão pré-definidos, e, por isso, a escuta musical silenciosa, e não dar música, será sempre não um bom hábito, mas dos poucos a que podemos recorrer.  

republicado pelo jornal digital Esquerda

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